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24/09/2012 - 03h05

Em debate, o poder da arte de chocar

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JENNIFER SCHUESSLER
DO "NEW YORK TIMES"

Na manhã da première de "A Sagração da Primavera", em 29 de maio de 1913, no Théâtre des Champs-Élysées, em Paris, o jornal "Le Figaro" previu que o balé de Stravinsky suscitaria "uma emoção que certamente desencadeará discussões acaloradas" e "deixará uma impressão inesquecível em todo verdadeiro artista".

Foi uma das previsões mais subestimadas do novo século nas artes. A discussão acalorada começou durante os primeiros compassos da música, quando gargalhadas de escárnio foram ouvidas na plateia, e em pouco tempo virou um turbilhão de repúdio que levou o compositor Igor Stravinsky a abandonar o recinto.

Stravinsky e seus colaboradores não tiveram a intenção de provocar um tumulto. Mas a première de seu balé ajudou a escrever um roteiro cultural moderno. Desde então, artistas vêm se esforçando para provocar seus públicos, elevando o choque a um valor artístico, um sinal de que estão combatendo tradições opressoras e o moralismo burguês.

Já faz tempo que o chocante virou mainstream, fato que impõe uma pergunta: será que a arte ainda consegue chocar? A nudez e a linguagem chula deixaram de ser escandalosos e décadas de ataques modernistas às limitações formais dissolveram as divisões entre arte e não arte, entre o erudito e o popular.

Hoje, pode parecer que o chocante não pode mais ser diferenciado do que é escandaloso, que aquilo que choca não é tanto um efeito secundário da inovação artística quanto um artifício criado por artistas para se promoverem. Mas muitos artistas afirmam que provocar choque ainda é o dever de qualquer pessoa que queira refletir o mundo real de volta a ele próprio. As plateias podem ser mais sofisticadas e blasés, mas ainda é possível lhes mostrar algo que elas talvez não queiram ver.

O diretor de cinema John Waters iniciou sua autobiografia, "Shock Value", de 1981, com a declaração de que ter alguém vomitando ao assistir a um de seus filmes "é como ser ovacionado em pé". Mas, ele disse recentemente, chocar simplesmente por chocar "é mortal".

"Se você causa choque simplesmente pelo tema escolhido, isso não é e nunca foi o bastante", disse. "Chocar é fácil. É muito mais difícil surpreender com humor inteligente."

Para ele, a coisa mais chocante de "Pink Flamingos" (1972) -seu clássico do gênero exploitation que mostrou a drag queen Divine comendo fezes de cachorro- foi o fato de as pessoas terem dado risada. "Era um comentário sobre a censura", disse Waters. "Sobre o que restava depois de 'Garganta Profunda' ter sido legalizado."

Indagar se a arte ainda pode chocar equivale a rapidamente suscitar outra pergunta: chocar quem, e onde? Os aficionados dos choques 'intelectualizados' provocados por cineastas europeus como Lars von Trier e Gaspar Noé, por exemplo, podem sentir-se chocados com o prazer sem culpa manifestado pelos fãs da franquia de pornô-tortura "Jogos Mortais". E violência que pode parecer corriqueira no multiplex pode ser chocante ao vivo num teatro, o que dirá numa ópera.

Quando a sátira "Mary", do dramaturgo Thomas Bradshaw, sobre um casal contemporâneo do sul dos EUA que mantém uma escrava, foi encenada no Goodman Theater, em Chicago, no ano passado, desencadeou uma tempestade de críticas, incluindo uma resenha no jornal "The Chicago Sun-Times" indagando se a peça não seria "uma enganação completa para averiguar quanta balela o público teatral se dispõe a tolerar antes de se revoltar".

Muitas pessoas já saíram no meio de apresentações de peças de Bradshaw, entre as quais estão "Burning" e "Strom Thurmond Is Not a Racist". Mas o dramaturgo insistiu que nas apresentações de "Mary" que ele acompanhou, boa parte da plateia, formada sobretudo por brancos, estava rindo com os epítetos raciais usados em abundância e os "escravagistas" cômicos e bem-humorados -as pessoas riam a partir do momento em que olhavam em volta para certificar-se de que outras pessoas estavam fazendo o mesmo.

Em "The Art of Cruelty: A Reckoning" (2011), a crítica Maggie Nelson questionou a permanência do que ela chamou de "doutrina de choque" do modernismo. Não que ela rejeite o valor do confronto. "A arte ainda precisa dizer coisas que a cultura não se permite ouvir", explicou. "Mas nem todo choque é criado igual. Depois de o susto inicial ter passado, é preciso analisar qual será a emoção seguinte."

Alguns dos artistas mais peritos em chocar dizem que, hoje em dia, recusar-se a chocar das maneiras previstas pode ser a atitude mais chocante. John Waters -cujo filme "Clube dos Pervertidos", mostrava sêmen jorrando na câmera-, sugeriu uma lição de casa a um hipotético jovem cineasta. "Se você conseguisse pensar em algo que fizesse seu filme ser proibido para menores de 18, sem sexo ou violência, teria o filme mais radical do ano", opinou.

 

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