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30/09/2012 - 03h31

Fotógrafo assassinado tem seus retratos de garotos das praias do Rio na Bienal

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SILAS MARTÍ
ENVIADO EXPECIAL AO RIO

Em março de 1992, Alair Gomes relatou em seu diário um sonho que teve com uma nevasca na praia de Ipanema. Longas linhas brancas começavam a se desprender das montanhas, escreveu. Era neve soprada no vento.

Gomes não entendeu o significado do sonho, mas registrou, umas linhas adiante, que deve ter alguma relação com um estado paradisíaco.

Meses depois, o fotógrafo morreu estrangulado em seu apartamento. Naquela manhã, ele havia recebido em sua casa um dos garotos que costumava retratar na mesma praia que amanhecera congelada no sonho.

Um dos maiores nomes da atual Bienal de São Paulo, Gomes fez mais de 20 mil imagens de meninos do Rio, objeto de obsessão em sua vida.

Sua obra, no limite entre o erótico e o pornográfico, não chegou a ver a luz do dia até a sua morte. Ressurgiu primeiro em mostra na Fundação Cartier, em Paris, em 2001, e agora em São Paulo, num resgate de nomes esquecidos proposto pelo curador da Bienal, Luis Pérez-Oramas.

Na época de seu assassinato, Gomes tinha 70 anos. Só um jornal noticiou a morte de um engenheiro homossexual, solitário, discreto e de hábitos estranhos. Embora amigos do artista tenham visto o suspeito sair de seu apartamento no dia do crime, o caso não foi investigado.

Uma das últimas pessoas a ver Gomes com vida e a arquivista de sua obra, hoje guardada na Biblioteca Nacional, no Rio, atestam que o provável assassino era o segurança de uma loja de discos próxima a seu apartamento, na rua Prudente de Morais, em Ipanema.

Gomes estava apaixonado pelo garoto, que chegou a posar para suas fotos.

As imagens devem estar entre os 80 mil negativos do artista ainda não revelados, material desconhecido até para quem cuida de sua obra.

Na Bienal, curadores da mostra precisaram cuidar para que a seleção de imagens em que os retratados aparecem nus não mostrasse o rosto dos modelos, já que o artista nunca pediu autorização para expor essas fotografias.

É uma questão jurídica, diz Luciana Muniz, responsável pelo arquivo de Gomes na Biblioteca Nacional, que recebeu o acervo depois de sua morte. Não é uma obra aberta, que qualquer um vem aqui e olha. Ele não queria isso visto fora de contexto.

No caso, Gomes não fotografou belos rapazes na praia só pela geometria platônica de seus corpos. Ele imaginou essas imagens vistas em sequência, como os movimentos de um concerto.

JANELA INDISCRETA

Tanto que chamou sua maior obra de Sinfonia, uma série de 1.776 imagens de homens fotografados em seu apartamento no Rio.

Quando vivo, Gomes mostrou poucas vezes a série em sessões caseiras, obrigando seus amigos a assinarem um termo em que se comprometiam a ver tudo até o fim.

Mais explícitas, as imagens da Sinfonia são o resultado de uma aproximação que começava de longe, da janela de casa, da qual avistava a praia de Ipanema por uma fresta entre outros prédios.

Minha janela dá para um verdadeiro caudal de garotos que vão à praia e que dela vêm, escreveu o artista em seu diário. Vivo olhando.

Depois de fotografar os rapazes com uma teleobjetiva, Gomes descia até a praia e mostrava as imagens aos retratados. Era assim que ele, um sujeito feio e estranho, na descrição de amigos, conseguia seduzir e convencer os rapazes a subir até sua casa e posarem nus para ele.

Mas, embora a obra de Gomes possa lembrar em alguns casos a fotografia homoeróticas de nomes como Robert Mapplethorpe, o artista, que era também engenheiro e físico, deu lastro a sua produção desenvolvendo teorias sobre a intimidade e o exercício do prazer como atos políticos.

Mais de 2.000 documentos de texto no acervo do artista se dividem entre teorias eruditas, tratados filosóficos e seus diários íntimos, quase todos escritos em inglês.

Ele adotou o inglês para ocultar informações, diz Muniz. Ele se sentia exilado no próprio país. Mas é um exílio que se desfaz agora com a exposição pública de sua obra. Em seus escritos, Gomes detalhou suas tentativas de preservar e tornar conhecida sua obra.

Minha obsessão por reconhecimento não desapareceu e não deve desaparecer, escreveu. Ver sinais definitivos disso é equivalente a saber que meu trabalho não será perdido. Há em mim uma necessidade imperiosa de fazer um registro de meus grandes envolvimentos amorosos.

 

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