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Crítica: 'Diários' deixam exposta natureza inacabada da obra de Tarkóvski
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CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA
Como todo artista movido por grandes ambições, o cineasta russo Andrei Tarkóvski teve a habilidade de constituir para si uma mitologia, quase uma santidade que ajudou a propagar o alcance de uma obra limitada em volume, mas desmedida em influência.
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Vinte e seis anos após sua morte, o abalo físico e filosófico de seu filmes volta a ser sentido com a retrospectiva e uma exposição de fotos durante a Mostra de Cinema de SP.
E, finalmente, a publicação dos "Diários", escritos pelo cineasta de 1970 a 1986, revela como a cultuada dimensão espiritual de seu cinema se forjou em grande parte no confronto com forças empenhadas em fazê-lo desistir.
O livro, que teve sua primeira edição na Europa em 1989, reúne um conjunto de sete cadernos com anotações pessoais, nas quais se misturam projetos realizados ou abortados, opiniões, desejos e muitas frustrações.
Os registros, criteriosamente datados e numerados, foram batizados de "Martirológio", expressão que ele, num primeiro instante, define como "uma lista de desventuras" e, mais tarde, com ironia, chama de "título pretensioso e mentiroso, mas que fique como um recordação da minha insignificância indestrutível, movimentada e fútil".
MISTICISMO
Depois de "A Infância de Ivan", estreia em 1962 no longa-metragem que teve uma recepção, em geral, de apoio da controlada cultura soviética, o trabalho seguinte de Tarkóvski, "Andrei Rublev", feito em 1966, permaneceu cinco anos vetado pelas autoridades, sob a vaga acusação de "misticismo".
Daí em diante, cada tentativa de filmar se tornaria, de fato, um martírio.
A escrita dos "Diários" inicia-se nesse tempo de espera e prolonga-se até a fase em que Tarkóvski, moribundo e no exílio, tenta obter autorização oficial para que o filho, Andrei, pudesse se reunir à família.
As notas, contudo, não são mera sucessão de lamúrias. Entre uma e outra denúncia dos sanguessugas, artistas confortavelmente posicionados como burocratas, Andrei Tarkóvski não deixa de ser divertido e venenoso em relação a outros cineastas com quem ele divide espaço no panteão.
Ozu, Buñuel, Bergman, Antonioni ou Angelopoulos, por exemplo, não ficam a salvo de opiniões nem sempre justas, mas coerentes com o ideal exclusivista de cinema do diretor.
Outros filmes cultuados pela maioria são destratados sem meio-termo. "Eu assisti a 'Apocalipse Now', de Coppola. O filme não tem sentido. Na verdade, é como um desenho animado", escreve, em abril de 1980.
De modo distinto da densidade teórica de "Esculpir o Tempo" (ed. Martins Fontes), os "Diários" contêm um pensamento em transformação, imperfeito e informe e têm a vantagem de deixar exposta a natureza inacabada de toda obra.
Pena que os descuidos de edição obriguem o leitor a pensar em russo para entender quem é "Leluche" (Claude Lelouch), "Kasavetis" (John Cassavetes) e "Foreman" (Milos Forman), entre outros.
DIÁRIOS
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