ILUSTRADA 50 ANOS: 1967 - "Terra em Transe" provoca debate nacional
Cinema como praxis, comunicação de massa, validade de obra de arte quando sua assimilação é difícil para o grande público, simplicidade de linguagem cinematográfica até o didatismo, foram alguns dos temas suscitados durante os debates sobre o filme "Terra em Transe", de Glauber Rocha, realizado anteontem à noite no Museu da Imagem e do Som, e do qual tomaram parte teóricos, cineastas, produtores, críticos e estudantes universitários. O filme está em cartaz no Rio e vem suscitando muita polêmica.
Acervo Paulo Autran |
Paulo Autran em cena do longa-metragem "Terra em Transe" (1967), de Glauber Rocha |
O início
A polêmica foi iniciada por um dos integrantes da equipe, o co-produtor e diretor de fotografia Luis Carlos Barreto, que disse em resumo:
"Por ser um filme sem concessões, caótico, polêmico, feito sem a intenção de agradar a quem quer que seja, a ele e ao autor são lançadas as maiores acusações, reacionárias no mais amplo sentido da palavra. A visão do grande público brasileiro está condicionada, parada no tempo, acostumada a linguagem simplista, estacionada no 'E o Vento Levou'. Enquanto isso, 'Terra em Transe' marca a divisão de duas épocas, e sua tentativa de criar uma linguagem nova chega a chocar, não é aceita de imediato. As acusações são iguais àquelas dos velhos professores de Carlos Drumond de Andrade, quando o rejeitavam. Pela mesma experiência passou Oscar Niemeyer, alvo do mesmo reacionarismo". O certo --entende Barreto-- é que o filme não deixa de ser discutido e, como matéria de debate, Glauber Rocha coloca a velha questão: se o cinema deve ficar estagnado ou deve prosseguir inovando e investigando. "Terra em Transe" é mais um marco na história do cinema, e principalmente no Terceiro Mundo quem quiser fazer cinema terá de enfrentar o desafio de meu diretor".
Politico ou não
A premissa de que o filme não é político e sim sobre política e seus agentes, lançada pelo próprio autor, foi contestada por outro debatedor, o jornalista Fernando Gabeira, que disse tratar-se de um filme político, ou de uma tentativa em linguagem confusa.
"Foi realizado para uma minoria intelectualizada e que se supunha capaz de entender e interpretar suas alegorias, mas dele nada pode aproveitar em tempos de compreensão de uma realidade nacional ou latino-americana". Para Gabeira, Eldorado é um país-robô em subdesenvolvimento, mas seus problemas não são idênticos aos da América Latina ou do Terceiro Mundo --e a inexistência do militarismo em Eldorado é um exemplo. O poeta, personagem central, tenta ser um super-homem e apela para uma solução de força num problema que exige soluções políticas.
Discordância
O psiquiatra Hélio Pelegrino discordou. Considerou "Terra em Transe" "a melhor coisa que se fez em cinema, pelo menos no nosso Terceiro Mundo. A similitude de Eldorado com países dessa área é total concreta".
A solução de força tentada pelo personagem Paulo Martins (Jardel Filho) "reflete dialeticamente as frustrações nas soluções políticas tentadas. Ele não é um projeto de super-homem e sim um projeto de homem, expressão de aparente fracasso de um poeta anarquista. Entende-se por 'anarquista' o precursor do revolucionário. O poeta foi o primeiro guerrilheiro de Eldorado, depois de ter visto que soluções políticas de nada adiantaram para seu país".
Segundo o psiquiatra que tomou parte nos debates, "para Eldorado já não havia soluções: fecharam-se as saídas com a coroação do rei, de um caudilho, de um Salazar. Paulo Martins é, no meu entender, personagem presente em todos os países subdesenvolvidos, e por isso não é um super-homem, negativa do gênio. Fidel Castro, quando desembarcou em Cuba com seus companheiros, também era poeta. É o idealismo contra uma estrutura político-social-militar-policial, bem montada e aparentemente rígida; lutar contra a máquina Batista era sonho, irreal, poético, mas deu certo. Paulo também sonhou, errou e morreu".
Defesa
Alex Vianni é outro crítico cinematográfico que defende "Terra em Transe", embora nem sempre concorde com os conceitos da Glauber Rocha ou as conclusões a que ele chega. Defende o filme como obra de autor, ou seja, filme de diretor, no qual em todas as cenas é sentida a presença do diretor.
"Nele, todos os atores se afirmam através da exasperação, marca imprimida por Glauber Rocha. O crítico se confessou admirador incondicional do trabalho de Paulo Lexar Sacarraceni, mas reconheceu que o verdadeiro 'desafio' foi lançado por Glauber Rocha: todo o realizador do cinema novo, na América Latina, ou no Terceiro Mundo terá de ver, sentir e pesquisar a obra de Glauber".
Vianni entende que o filme não é comunicativo e que muitas vezes os atores falam mas não se entende. Entretanto, tudo foi premeditadamente, caoticamente, "e a verdade, o caos, o transe de Eldorado é idêntico àquele que sentimos diante de uma realidade que nos constrange. O flashback, justamente na morte do poeta, quando ele recebe os quatro tiros que o matam, é a mesmo morte que sentimos diante de uma realidade maior que nossas forças. A derrubada de um governo legitimo, a perda de algo para nós inabalável, nos levam àquela incompreensão momentânea e este é o transe que Glauber consegue transmitir com a exatidão de um gênio".
O poema
Para o cineasta Joaquim Pedro de Andrade, "o poeta é o guerrilheiro pois o povo de Eldorado não assume posição crítica diante de seus problemas e os grandes heróis se fazem com a morte. A morte como fé e não como solução. Assim, a morte do poeta é morte-vida, e não é possível viver quando não se está disposto a morrer por uma idéia, por um amor, por um povo, por um amigo". O poema de Glauber Rocha --lembrou Joaquim Pedro-- mostra que Paulo Martins morre pelas razões de viver quando diz:
"Este povo alquebrado
cujo sangue é sem vigor
Este povo precisa da morte
mais do que se possa supor;
O sangue que estimula no irmão a dor,
o sentimento do nada que gera o amor,
a morte como fé, não com temor"
Livraria da Folha
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