ILUSTRADA 50 ANOS: 2000 - Cícero Dias inventou o mundo
Cícero Dias inventou o mundo em 1929. O planeta em questão tinha como marco zero a capital pernambucana. Era o célebre painel de 15 metros de largura "Eu Vi o Mundo... Ele Começava no Recife".
Aos 93 anos, o artista pode dizer tranqüilamente que não viu apenas o universo que ele mesmo criou em seus quadros.
No caminho entre a fazenda pernambucana Jundiá, onde nasceu, em 1907, até Paris, cidade em que vive, ele cruzou com Albert Einstein e James Joyce, esteve preso na Alemanha com Guimarães Rosa, foi amigo de copo e tinta de Pablo Picasso e "chapa" de todos os modernistas brasileiros, do "a" de Anita Malfatti, ao "z" de "Zé" Lins do Rego.
E Dias não foi "só" testemunha do século 20. Viu e foi visto. Um exemplo disso chega hoje às livrarias. O primeiro número de uma nova revista de literatura brasileira, chamada "Teresa", será lançado hoje trazendo um longo ensaio "semi-inédito" que Mário de Andrade escreveu em 1944 a partir da obra do artista.
"Considero o Cícero Dias aquarelista uma das contribuições mais originais que apresentamos nas artes plásticas contemporâneas", cravou Andrade, nesse que seria um de seus últimos textos.
A recíproca é verdadeira. Em entrevista à Folha, em seu apartamento, a cem metros da Torre Eiffel, ele falou com olhos mareados sobre o autor de "Macunaíma".
"Levei uma vez Mário para conhecer um canavial, em Pernambuco, que ficava bem perto do mar. O verde do canavial é como o verde do mar. Mário quase chorou. E o mar se jogava nas pedras e levantava quase dez metros."
As marcas não ficaram só na memória lúcida do artista. O esverdeado dos canaviais tinge todas as fases de sua obra. Ele explica: "Fui criado em uma zona açucareira. Minha pintura sempre levou muito do verde da cana".
Afundado em uma poltrona coberta com um pano branco, o artista chama a mulher, a francesa Raymonde, com quem é casado desde 1943, e pede que ela sirva uísque. Bebe um gole curto, se apóia na bengala de madeira e volta a falar sobre o escritor.
"Oswald ficou com ciúme quando Mário escreveu 'Macunaíma'. Era muito esquisito o Oswald", fala, sorrindo. "Brigado com Oswald, Mário dizia: 'Eu não quero perder minha brasilidade viajando pela Europa'."
Foi exatamente isso que Cícero fez. Não perdeu a brasilidade, como mostra o sotaque nordestino, mas vive no continente europeu desde 1937, quando escapuliu do Brasil fugindo do Estado Novo. O conselho veio de Di Cavalcanti, que já morava em Paris e que veio receber no porto o artista que chegava no navio "Le Groix".
A aclimatação foi rápida. Não a de temperatura, já que Cícero diz que a coisa de que mais sente falta do Brasil é o calor ("O inverno daqui me chateia muito"). Ele logo se ajustou foi com o termostato cultural parisiense. Um ano depois, já expunha e tinha sua arte elogiada por Pablo Picasso (que à essa altura, já era Pablo Picasso).
A afinidade com o pintor de "Guernica" não foi só estética. Foram tão amigos que, durante 12 anos, o telefone da casa do artista espanhol esteve nas listas telefônicas de Paris com a identificação Cícero Dias. "Era um modo de as mulheres com quem ele se metia não descobrirem seu número."
Picasso foi também padrinho da única filha do casal Dias, a também artista Sylvia. Uma foto do pintor com a afilhada quando jovem é uma das primeiras imagens no trajeto de quem entra no apartamento de C.D., iniciais grafadas na caixa de correio no térreo.
Nas paredes, nada das aquarelas líricas e quase surrealistas ("surnudistas", como definiu o amigo Gilberto Freyre) que produziu antes de deixar o país. Elas são repletas das obras geométricas abstratas que Dias fez a partir de 1945.
"Cansei do surrealismo", explica, e termina com um interrogativo "compreende?", com que pontua os finais de frases.
O artista, que projetou uma praça na capital pernambucana no final de 99 (leia abaixo), diz que ainda pinta "uns trabalhos abstratos", que prefere não mostrar.
Mas dá um impulso da poltrona, levanta e busca um caderno no qual tem escrito sobre Recife. E recita, como um rei Lear: "Num clarão estranho, rompendo tudo, num ruído metálico de suas grandes asas, os poderosos arcanjos vão paliando pelas costas do Nordeste os corais. Corais e mais corais. Belos, rosas, vermelhos. Sabiam da luz das estrelas. Estrelas cadentes, bem vivas, a mostrar o caminho da vida eterna. E, ao abrigo de uma esfera celeste, colorida de um azul de anil, as formas e as cores se ajustavam".
Cícero Dias continua criando mundos. E eles, inevitavelmente, começam no Recife.
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