Anne Rice fala sobre vampiros e novo livro centrado em lobisomem
Faz 41º C lá fora, e Anne Rice surge toda de preto, crucifixo no pescoço e sorriso largo no rosto.
Dentro de casa, toma refrigerante diet e oferece minibombas de chocolate. Os móveis da sala são claros, há vista para uma piscina e uma estante de livros decorada por santos de madeira comprados no Rio de Janeiro.
A escritora americana não está mais na sua cidade natal, a úmida Nova Orleans, cenário de seu primeiro romance e obra mais famosa --"Entrevista com o Vampiro", lançado há 35 anos e responsável por modernizar e glamourizar os épicos vampirescos.
Ela mora há seis anos na abafada Palm Desert, nos confins da Califórnia. A mudança aconteceu na mesma época em que substituiu o vampiro sedutor Lestat por Jesus Cristo em seus livros.
Foi sua volta à religião, que abandonara aos 18. Mas durou pouco. Em 2010, largou a Igreja Católica e os padres homofóbicos, embora ainda conserve sua fé.
Para os leitores, o que mais interessa: ela desistiu da promessa de nunca mais voltar às criaturas obscuras. Rice se entregou aos lobisomens.
Fernanda Ezabella/Folhapress | ||
A escritora Anne Rice em sua casa, em San Diego |
OUTRO CAMINHO
"Não sou mais a niilista ou ateia que fui quando escrevi sobre os vampiros", diz a escritora. "Tenho um outro caminho espiritual. Mas há um lado sombrio, sem dúvida. Meu lobisomem é um herói sobrenatural que mata."
"The Wolf Gift" (O presente do lobo), com mais de 500 páginas, só sai em 2012. Fala sobre um jovem jornalista de San Francisco que é mordido e vira lobisomem. Mas como manter a voz original com tantos lobos-homens surgindo na TV e no cinema?
"É difícil. Mas quero dar a minha versão deste personagem, criar um universo deles", disse. "Vou te contar algo irritante: é complicado achar uma palavra para seu monstro que já não tenha sido usada!"
GENÉTICA
O caminho oposto também acontece. Rice, que escreveu 12 livros de vampiros entre 1976 e 2003, diz ver o DNA de seus personagens na série "True Blood" e na saga "Crepúsculo". "Tudo bem, admiro esses novos autores. Estão fazendo material original. Claro que são influenciados. Da mesma forma que fui por 'Drácula' [de Bram Stoker]."
Espalhadas pela casa estão pinturas feitas pelo marido, morto em 2002. Da cozinha vem uma música de João Gilberto. "Coincidência", diz. "Ele adorava esse disco. Comprei para me lembrar dele."
Rice também perdeu a irmã em 2007, o que a levou à depressão. "Minha saúde não andou muito boa nos últimos anos. Apenas agora estou voltando a ficar bem", diz a autora, que completa 70 anos em outubro.
Recentemente, anunciou que "Entrevista com o Vampiro" ganhará nova versão, em quadrinhos, desta vez pelo ponto de vista de Claudia, a menina-vampiro. Ela nega que voltará a escrever sobre tais criaturas, mas aponta um possível retorno ao cinema.
"Há muito interesse em Lestat. Querem vê-lo nas telas de novo. E eu também", diz, sobre seu personagem mais conhecido, interpretado por Tom Cruise em 1994.
*
Leia abaixo a íntegra da entrevista com Anne Rice.
Folha - Faz 35 anos que seu primeiro livro foi publicado. Quais suas memórias daquela época?
Anne Rice - Ah, eu lembro de tudo, até da onde estava sentada na casa. Estava escrevendo um conto, pensando em como seria colocar um vampiro para falar da sua própria história. Nos primeiros rascunhos, ele surgiu bem cínico, selvagem. Mas quando passei a transformar em romance, ele foi se desfazendo, falando de verdade da sua dor. E aí surgiram Lestat, Claudia, foi incrível.
Mas foi um período complicado na sua vida, não?
Morava num apartamento em Berkeley, na California, e minha filha tinha morrido de leucemia aguda. Era um período de dor, pesado. Comecei a escrever o livro e não o associe ao sofrimento. Era um escape para mim. O livro me levou para longe da dor e me mostrou uma forma de falar da qual eu me senti segura. Eu adorei, fiquei encantada com o romance dos vampiros e queria mostrá-los bonitos, sensuais. Não como em "Drácula" [de Bram Stoker], bestial e horrível.
A senhora disse numa entrevista que se sentia como Lestat. Por que não Louis, narrador do romance?
Bem, eu fui Louis quando escrevi o primeiro livro, mas no segundo eu virei Lestat. Era meu herói. Lestat é um desses personagens que te pegam de surpresa. Não vi ele chegando. Louis era meu foco, mas de repente esse outro personagem chegou e tomou conta de tudo, pedia atenção, me puxava. E eu o abracei e ele virou meu alter-ego, minha voz. Personagens precisam fazer isso, precisam exigir.
A senhora revisita esse personagens?
Não, na verdade. A não ser para os quadrinhos ["Entrevista com o Vampiro" ganhará uma nova versão em HQ em 2012] ou quando falamos sobre direitos para o cinema. Devemos ter algum filme com Lestat, mas ainda é muito cedo para dizer qualquer coisa.
Deixaria Tom Cruise fazer novamente [o ator estrelou o filme de 1994 de Neil Jordan]?
Sem dúvida, claro. Mas não acho que ele gostaria de fazer. Teríamos ouvido dele há muito tempo se quisesse. Ficaria muito feliz em ouvir sua voz no telefone. É um cara maravilho e um ator bom.
Mas na época a senhora foi contra a escolha dele para o papel e depois mudou de ideia. Chegou a conhecê-lo pessoalmente?
Não, tivemos várias conversas por telefone e ele foi muito gentil. É um cara muito legal e tem uma dimensão espiritual muito grande, ele acredita em algo e trouxe isso para seu Lestat. Não foi uma interpretação superficial. Foi ótimo.
Mas ele faz parte da Cientologia. É meio esquisito, não?
É verdade, mas pelo menos ele acredita apaixonadamente nisso. E respeito profundamente. Para mim, pessoas que acreditam em algo são mais interessantes do que pessoas que não acreditam em nada. Não divido suas convicções, mas admiro que ele se importe.
E quais livros estão interessados em fazer filme?
Não sei, é cedo para dizer, mas espero que saia em breve algum anúncio. O filme real sobre Lestat ainda tem que ser feito. Há 12 livros sobre suas aventuras, e os filmes que fizeram mal tocaram a superfície. Pelo menos é como eu vejo Lestat.
E a senhora escreveria o roteiro deste possível filme, como fez com Neil Jordan?
Não. Estou tão ocupada com meus livros. Só quero trabalhar com essa minha história nova do lobisomem e tenho outro livro sobre Atlantis. Se eu tenho algum talento, é aqui que ele é necessário, nos livros. Não em roteiros.
O diretor Guillermo Del Toro disse uma vez que o fascínio que temos por vampiros talvez seja por causa de nossas memórias reprimidas de quando éramos primatas e, algum momento, canibais. Acha possível?
Sim, pode ser verdade. Acho que temos uma parte do cérebro que reflete a nossa evolução. Há coisas primitivas em nosso cérebro que voltam para quando éramos completamente animalescos. Por milhares de anos, a espécie humana rodou em pequenos bandos pela terra batalhando para sobreviver, disputando lideranças. Isto não vai deixar seu DNA com apenas algumas poucas milhares de anos. É uma coisa incrível. Acho que história da evolução e antropologia são chaves para entender quem somos.
Já cruzou nessas feiras de livros com Charlaine Harris (autora dos livros que inspiraram "True Blood") ou Stephenie Meyer (autora dos livros que inspiraram os filmes "Crepúsculo")?
Não. Mas troquei e-mails com Charlaine, escrevi para parabenizá-la pelo seu sucesso. Não conheço Stephenie Meyer, mas admiro o que ela conseguiu fazer. O público realmente premia coisas originais. E ela foi bastante original em colocar esses vampiros na colégio. Você não consegue fazer isso se não tiver um sentimento verdadeiro. Eu não poderia fazer, não tenho a menor ideia de como adolescentes se viram ou se relacionam com vampiros. Mas ela conseguiu.
E como será "The Wolf Gift" [livro que está terminando agora e marca sua volta aos monstros]?
Adoro pegar temas clássicos que a gente já viu nos filmes, na cultura pop. Fiz isso com os vampiros. Tirei o vampiro de Hollywood e fiz com que ele contasse sua história pessoal. Neste romance do lobisomem, ele não conta sua história, eu o faço. É um jovem jornalista de San Francisco que é mordido e passa pela transformação, nos dias de hoje. Ele tem uma adorável família, uma namorada, vive num ambiente bem criativo e interessante. Ele descobre que pode se transformar nesta coisa e ir aos telhados das casas à noite e ouvir as vozes das pessoas em todos os lugares. É um herói de verdade. Ele não perde a cabeça quando vira lobisomem, não vira um animal à noite e depois esquece o que fez. Tem noção de tudo. Já tenho 500 páginas prontas e quero terminar nesta semana.
Como faz para não ser influenciada por todos esses outros homens-lobos que aparecem na TV e nos cinemas?
É difícil. Minha própria irmã [Alice Borchardt] fez três livros sobre lobisomens que eu nunca li. Ela morreu em 2007, era realmente uma verdadeira mentora para mim. Eu só quero dar a minha versão neste personagem e deixá-lo desenvolver seus sentimentos. Sei que o tema está supersaturado, mas são como faroestes e as histórias de detetive. Não há fim para esses gêneros. Você pode fazer um excelente faroeste amanhã. Você sempre está competindo com você mesmo, não com os outros.
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