Autora chilena retrata efeito da cegueira
Quando trabalha, a chilena Lina Meruane se torna uma "obcecada". "Um romance é o produto de uma escrita em transe", conta. Roberto Bolaño, seu conterrâneo, tratava Meruane como escritora "endemoninhada". Ela concorda com a definição.
Por isso, somente depois de muitas páginas escritas, ela percebeu que "Sangue no Olho" (Cosac Naify) não parecia o livro de memórias imaginado a princípio. "A obra era menos um relato intenso sobre minhas experiências do que um experimento linguístico sobre o efeito da cegueira", diz Meruane, professora da Universidade de Nova York.
"Sangue no Olho", elogiado por Enrique Vila-Matas, primeiro livro da autora publicado no Brasil, narra como uma escritora chilena radicada em Nova York sucumbe a uma enfermidade misteriosa. De repente, em uma noite de sábado, os seus olhos se encharcam de sangue negro.
"Ao contrário de outros autores, como José Saramago, que inventaram um narrador para falar de quem está privado da visão, eu escolhi uma narrativa que se desenvolve de dentro da cegueira", diz. "Eu escrevo sobre as reações de um personagem àquilo que ele não entende. O que faço tem mais a ver com o como do que com o porquê."
Narrado em primeira pessoa por Lina, "Sangue no Olho" tem teor autobiográfico. Embora desconverse sobre o assunto, a escritora chilena sofreu um problema ocular menos grave que o da personagem do romance. A dedicatória do livro é para Paul Latkany, o oftalmologista que tratou a autora.
Divulgação | ||
A escritora chilena Lina Meruane, autora do livro 'Sangue no Olho' |
ESCOLA FRANCESA
Leitor de Meruane, Bolaño a associou esteticamente com "certa escola francesa (Marguerite Duras, Nathalie Sarraute)", em que uma perspectiva "mais subjetiva e introspectiva se recusa a abrir mão de qualquer coisa".
"Assim como a personagem, eu me sinto perdida nas cidades", ela admite. "A minha relação não é tão intensa com o espaço. Eu me apego a experiências emocionais."
A autora identifica três forças binárias no livro: dois olhos, dois amores, duas cidades. Antes de se submeter a uma cirurgia em Nova York, a protagonista visita a família em Santiago com Ignacio, o seu namorado espanhol.
Quando chega ao Chile, Lina encontra um grupo que lhe ameaça a paz interior, "aquele turbulento clã de origem mediterrânea armado de amor até os dentes". "'Sangue no Olho' não romantiza, ele retrata o amor sufocante dos familiares", diz Meruane.
Santiago se revela um lugar insalubre para a personagem. "Agora Lina só pode ver o que ela lembra. E a sua visão é o passado de um país que não se curou da ditadura de Augusto Pinochet."
REALIDADE CONFUSA
Mas a Nova York à qual Lina retorna também "não é idealizada como a dos filmes". "Ao contrário de uma expectativa de coerência, ordem e eficiência, a realidade nova-iorquina se apresenta confusa e dura, como na burocracia do hospital, em que ninguém sabe se o plano de saúde cobrirá o tratamento."
Sangue no Olho |
Lina Meruane |
Comprar |
Lekz, um oftalmologista da ex-União Soviética, opera Lina. "Ele é um personagem com veleidades artísticas, não só autoritário, mas passional", diz a escritora. "Como pensa no próprio trabalho como uma obra de arte, acha que vai escrever nos olhos de Lina e deixar sua assinatura."
A protagonista conquista a independência sentimental ao acreditar na própria cura.
"Quando decidiu que não seria mais cega, ela muda a natureza da sua relação com Ignacio", diz Meruane. "Apesar de vulnerável, tem força para desafiar um estereótipo associado à figura feminina, o sacrifício amoroso."
Em "Sangue no Olho", é ao homem que cabe apresentar uma prova de amor.
SANGUE NO OLHO
AUTORA Lina Meruane
TRADUÇÃO Josely Vianna Baptista
EDITORA Cosac Naify
QUANTO R$ 34,90 (192 págs.)
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade