CRÍTICA
Peça 'O Capote' acentua distopia de conto de Gógol
Sob o disfarce da comédia, o conto "O Capote" (1842), do autor ucraniano Nikolai Vassílievitch Gógol (1809-1852), guarda traços de uma história duplamente trágica.
Não bastasse a realidade exercer sobre o protagonista deste clássico uma espécie de estrangulamento econômico e político, partem da própria pequenez do anti-herói Akáki –um copista perdido entre tantos outros no império russo do século 19– os danos de sua derradeira desgraça.
Personagens trágicos anteriores a ele (como Édipo, Antígona e Hamlet), tiveram o direito de deixar ao menos seus nomes impressos ao título de uma obra. Nem isso Akáki conseguiu realizar.
João Caldas/Divulgação | ||
O ator Rodolfo Vaz como o personagem Akaki na peça "O Capote" |
Gógol privou-o dessa chance, preferiu batizar o texto fazendo menção ao casaco do protagonista, destacando o invólucro e não o sujeito em seu interior. Não seria de todo mal se o texto se chamasse "A Carcaça", dando pistas de algo morto por antecipação.
Com adaptação de Cássio Pires e Drauzio Varella, e direção de Yara de Novaes, a história ocupa o palco do CCBB com encenação sombria e atmosfera distópica bem acentuada, sufocada por uma cenografia que se transfigura ora revelando as paredes de uma repartição pública ora um beco sem saída, onde há uma escada ascendendo ao fundo, levando a lugar nenhum.
No espetáculo, dois atores coringas (Rodrigo Fregnan e Marcelo Villas Boas) vão dividir a cena com Rodolfo Vaz (Akáki), assumindo papéis diversos na história, passando por chefes de repartição, militares, ladrões.
Nesse trânsito de identidades, dá-se forma também à figura de dois narradores. Eles contam a história como se estivessem dando fluxo a uma série de ordens a Akáki, e nessa construção sublinha-se a criação do protagonista como um personagem-marionete.
A narração original em terceira pessoa passa a ter na peça um rosto. Um não, dois. A mudança de registro não soa estranha. Comumente, os narradores das histórias de Gógol, cujas tessituras singulares trazem traços de ironia, são eles próprios anômalos.
BRUXOS
Mas há sim algo que sai dos trilhos na peça. Ao se reportar ao personagem, como bruxos no comando, capazes de prever um destino final, esses narradores fazem uma interlocução errática também com o público. "Você fará isso", "Você se tornará aquilo". Se fecharmos os olhos, teremos a nítida impressão de que os narradores se dirigem a nós –e não a Akáki.
A peça progride para a cena de uma autópsia, com luminárias debruçadas sobre o corpo de um personagem tão presente quanto em vida.
Se a morte não lhe furta a alma, é porque alma não havia, dando lugar ao rastro de outra natureza, que a peça nomeará "fantasma", na deposição última do sujeito de sua essência vital.
Projeções em vídeos também revestem a cena de fantasmagorias. Entre papéis e derivados tumores da burocracia, foi-se para todo o sempre a gagueira de Akáki –um recurso de figuração didático utilizado por Vaz, em que se furtou a chance, na peça, de comentar o que o texto de alguma forma já dizia.
Sobra no palco um comentário sobre o que herdamos de uma terrível piada.
Livraria da Folha
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