Festival de curtas reflete radicalismo político do país; veja críticas
Não basta documentar, tem de tomar partido. Em sua 26ª edição, o Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo exibe uma programação que reflete o radicalismo do debate político no país.
Na Mostra Brasil, um panorama da atual produção nacional, uma série de curtas –documentais ou ficcionais– assumem posicionamento.
"O curta é uma ótima plataforma para expor uma opinião: ele foi democratizado", diz Zita Carvalhosa, organizadora do evento. Ela observa a presença menor de documentários clássicos, aqueles que expõem um problema. "Só filmar as misérias não é suficiente. Nem para o diretor nem para o espectador."
A diretora Beth Formaggini, que tem o curta "Uma Família Ilustre" na programação, assume o lado engajado.
"Estamos num momento difícil: parece que a democracia não tem mais importância para certas pessoas", diz ela. "E há muita gente que teve a vida tirada por causa dela."
Seu curta convoca um ex-delegado da época da ditadura militar para conversar com um psicólogo defensor dos direitos humanos. De Bíblia no colo, o hoje pastor evangélico encara fotos de militantes de esquerda que ele diz ter matado e incinerado. "Não tinha emoção nenhuma. Era cumprimento de ordens", afirma.
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Cena do curta 'O Teto Sobre Nós', que está no Festival Internacional de Curtas de SP |
"Ciclo 7 x 1" trata do legado da Copa do Mundo de 2014. O curta acompanha uma catadora de material reciclável que perambula pelas ruas de Curitiba enquanto a classe média enche bares para ver os jogos pela TV. Ela e os filhos assistem a tudo de soslaio.
"Um Dia", de Angelo Defanti, fica na cola do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ). Defanti, que conta admirar Freixo, diz que seu registro é imparcial. "Ele aparece fazendo o que faz sempre."
"O Teto Sobre Nós", do gaúcho Bruno Carboni, parte de um assunto quente (a ocupação urbana em Porto Alegre) e o trata sob chave ficcional. A trama esmiúça a angústia de um grupo de moradores sem-teto ante a ameaça de despejo do prédio que ocupam.
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DANCE OF LEITFOSSIL
QUANDO: 20/8, ÀS 19H, NO MIS
Com vários prêmios, "Dance of Leitfossil" é um dos filmes obrigatórios do festival. O diretor Carlos Adriano apropriou-se de um pas-de-deux de Fred Astaire e Ginger Rogers e pôs o casal para dançar um fado.
A desconstrução surpreende tanto quanto a maestria da montagem, que faz do enlevo de Ginger e Fred o fio condutor de um delicado trabalho de luto de um cinema que existiu, de um amigo que se foi.
Na síntese lírica do diretor, a dança teima em não parar e a memória teima em não morrer, fluindo e refluindo entre obstáculos. E com certeza elas não morrerão, transformadas em pura poesia nesse filme precioso. (ALCINO LEITE NETO)
Um prédio do Centro de Porto Alegre, ocupado por famílias sem-teto é o cenário.
Montador de um dos longas brasileiros mais originais dos últimos anos ("Castanha", de Davi Pretto), o diretor Bruno Carboni parte dos mesmos princípios norteadores daquele filme ""o hibridismo entre documentário e ficção, com tintas de filme de horror"" para alcançar um resultado singular.
Sem esconder referências ao cinema do português Pedro Costa, o curta é marcado por rigor estético e um trabalho de som que acentuam a atmosfera angustiante que Carboni procura traduzir. (PEDRO BUTCHER)
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Cena do curta 'Um Dia' |
Um dia na vida do deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL, é resumido em pouco mais de 20 minutos.
Em preto e branco e com uma câmera no estilo do cinema-direto, que acompanha o personagem sem interferências explícitas, o filme de Angelo Defanti segue Freixo em uma visita à Rocinha, um discurso na Assembleia Legislativa e um protesto contra a privatização da Petrobras.
Ao revelar um pouco do cotidiano de um político de esquerda (e um raro deputado respeitado no Rio de Janeiro), não deixa de guardar seu interesse ""mas a impressão final é a mesma de muitos curtas: a de que parece um ensaio para um longa-metragem. (PEDRO BUTCHER)
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Cena de 'Uma Família Ilustre', de Beth Formaggini, que está no Festival Internacional de Curtas de São Paulo |
O formato convencional de entrevista aumenta o impacto do filme de Beth Formaggini que enfoca a política de extermínio dos militantes de esquerda no regime militar.
O ex-delegado Cláudio Guerra identifica as vítimas e dá detalhes dos modos de incineração dos corpos numa indústria, num método semelhante ao dos nazistas.
Mais apavorante que a neutralidade do depoimento é a comprovação de como a tortura e o assassinato foram institucionalizados pela ditadura. Para eles, não bastava derrotar e matar, era preciso extinguir, a ponto de os parentes hoje nem conseguirem acreditar se o que aconteceu é fato ou ficção. (CÁSSIO STARLING CARLOS)
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Cena do curta 'Ciclo 7 x 1', que está no Festival Internacional de Curtas de SP |
Intercalar o cotidiano de uma catadora de papel com seis filhos e as vitórias da seleção na Copa (e a derrota para a Alemanha) é o conceito que "Ciclo 7 x 1" esboça.
Para evitar a retórica da miséria, o diretor Gil Baroni opta pela observação, a fim de captar à distância o abismo social flagrado num mesmo espaço. Esse olhar nos desloca para um lugar social que ignoramos e evidencia a alienação total entre as classes, mais do que o conflito.
Mas o acúmulo de observação ao longo de 25 minutos provoca desatenção. Uma edição decisiva permitiria impor um ponto de vista que está lá, mas pouco se percebe. (CÁSSIO STARLING CARLOS)
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Lucrecia Martel nos bastidores de seu filme 'Zama' |
Um garoto de caricato sorriso diabólico e um jorro de sangue espalhado nos azulejos brancos do banheiro.
Rodado em 1989, o curta pouco tem a ver com a sutileza e o rigor dos quadros que consagrariam a argentina Lucrecia Martel ("A Menina Santa", "Pântano") nas décadas seguintes.
A trama, contudo, já dá algum prenúncio do que se poderia esperar dela: o mergulho numa mente angustiada. No caso, um garoto, que usa desenhos para projetar uma vingança imaginária contra o alvo amoroso de sua mãe.
Com menos de dois minutos, o filme embebido em estética kitsch dos anos 1980 só vale para os fãs curiosos. (GUILHERME GENESTRETI)
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