Crítica
Oportuna, compilação da obra de Raduan Nassar ganha densidade
Jorge Araújo/Folhapress | ||
O escritor brasileiro Raduan Nassar, que lança obra completa, em retrato de 1989 |
O "paralelepípedo lírico" que é Raduan Nassar, na sarcástica e precisa definição que o próprio autor cunhou em entrevista, ganha em densidade e não perde lasca alguma com a oportuna reunião de sua obra completa.
Além dos livros já conhecidos —"Lavoura Arcaica", "Um Copo de Cólera" e "Menina a Caminho"—, o volume traz boa fortuna crítica e festejadas novidades: dois contos do fim da década de 1960 —"O Velho", antes disponível apenas em francês, e "Monsenhores", inédito—, e um ensaio, "A Corrente do Esforço Humano", publicado na Alemanha em 1987.
Os elementos centrais de "O Velho", como em "Menina a Caminho", são o rumor, aquilo que não pode ser dito, as elipses relacionadas ao excesso e ao perigo, e o enquadramento, tanto em seu aspecto negativo —o de imposição de uma ordem— quanto positivo —o de ênfase, destaque. O velho conversa com a esposa sobre um dos hóspedes da pensão que ambos mantêm. Segundo ele, andam falando do moço nas ruas, no bar. Embora os rumores estejam relacionados às ameaças que o jovem funcionário público sofre por não aceitar corromper-se, o substrato político, como de hábito na obra do autor, espelha e amplifica outro conflito: às tentativas do velho de compartilhar os rumores a esposa responde sempre com rispidez, no limiar entre o interesse e o desprezo.
Em Raduan, toda crise ética, política ou moral tem outra face, quase sempre mais aparente, de disputa entre corpos —como o da mulher, ativa e que dita as ordens, e o do marido, marcado pela senilidade e pela decrepitude, na visão da esposa. Não à toa, esse erotismo vivido em sua fase decadente —ela o chama de "porcaria de velho" e "caduco"— faz o protagonista sentir cheiro de flores na pensão. Talvez as do próprio enterro?
As flores que ele crê perceber servem bem aos enamorados e aos mortos, mas só quando belas. Inevitavelmente, porém, elas apodrecem, e nesse processo não deixam de ter os sentidos que lhes eram atribuídos. Em "Monsenhores", "as flores se encontravam murchas, talvez podres, exalando mau cheiro".
O conto traz um dado novo e importante ao conjunto da obra: sua primeira narradora do sexo feminino. Ermínia interrompe o jantar com a família quando é chamada a ir, com urgência, à casa de Lucila, vizinha e comadre. Dias antes, Ermínia recebeu sua visita, "uma sombra na cozinha, era a Lucila encostada na parede, quieta, quieta". Nessa noite, de saída, a comadre, "o rosto de fazer pena", colheu os monsenhores do jardim da narradora. Ao entrar na casa sombria onde algo urgente se desenvolve, Ermínia vê as flores no vaso: chamuscadas pela vela, elas prenunciam uma descoberta terrível, relacionada, como em "Lavoura Arcaica", a transgressão sexual e imposição violenta da ordem patriarcal.
Ordem é, aliás, uma das palavras que talvez melhor exemplifiquem a obsessão do autor com certas estruturas, imagens ou figuras; obsessão ainda mais fácil de notar agora, nos textos reunidos. No ensaio que fecha o livro, Raduan discute os conceitos de centro e periferia para defender que toda ideia é fruto não da grandeza de uma civilização, mas de uma "corrente do esforço humano". Por isso, qualquer superioridade ou inferioridade advinda daqueles conceitos seria não só injustificável como desonesta: "quem fala em 'potência', segundo o jargão dos moralistas, está pensando na obscenidade do poder, investido de autoridade". Outra vez política e erotismo se imiscuem.
Não era de se imaginar, conhecendo-se o autor, qualquer exaltação a uma utópica comunhão global baseada no bem comum. Para ele, e esse é um dos eixos de "Um Copo de Cólera", todo homem é regido pela "dependência absoluta de valores, coluna vertebral de toda 'ordem', e encarnação por excelência das relações de poder". Impor uma ordem é dar forma, e toda forma, em última instância, condena à imutabilidade.
Obra Completa Raduan |
Raduan Nassar |
Comprar |
É uma batalha contra categorias e formas que a obra magnífica de Raduan encena. Se há uma geometria específica que determina todos os seus aspectos, é porque a passagem do tempo é vista sempre como deformação, degradação da forma original: infantil, mítica, distensa, plena. Na corrente do esforço humano, "só os tolos se comprometem com a 'ordem' que os subjuga". O velho da pensão é senil, tem a virilidade ameaçada. O funcionário público, com feições de menino, ainda não foi corrompido, e é enlaçado pelo braço obscenamente branco de uma mulher. Os monsenhores têm o mau cheiro que o amor e a morte também podem exalar.
ESTEVÃO AZEVEDO é editor e escritor de "Tempo de Espalhar Pedras" (Cosac Naify)
Livraria da Folha
- Box de DVD reúne dupla de clássicos de Andrei Tarkóvski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenciário
- Livro analisa comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade