Estudo contabiliza 273 referências a Shakespeare em Machado de Assis

Crédito: Domínio Publico Retrato de Machado de Assis feito por Marc Ferrez. CRÃDITO: Domínio público ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
O escritor Machado de Assis

NELSON DE SÁ
DE SÃO PAULO

Eugênio Gomes, um dos primeiros críticos a se voltar para a questão, em meados do século 20, apontou "frequentes alusões" de Machado a Shakespeare, relacionando as principais. A americana Helen Caldwell falou em 225, mas sem dar a lista.

O primeiro levantamento sistemático da extensão com que o escritor brasileiro se reportava ao dramaturgo inglês saiu em 2007, no estudo "Machado de Assis: O Romance com Pessoas", de José Luiz Passos: 211 referências.

Agora "Machado & Shakespeare: Intertextualidades", de Adriana da Costa Teles, acrescenta 62. Total: 273. Três tragédias se destacam: "Otelo" nos romances, "Hamlet" nos textos jornalísticos e "Romeu e Julieta" nos contos do "Jornal das Moças".

João Roberto Faria, professor da Letras-USP e organizador de obras de Machado, avisa que pode vir mais por aí. Volta e meia "alguém descobre num jornal perdido" e, por exemplo, "pode aparecer coisa nova" na hemeroteca da Biblioteca Nacional.

Teles conta que não era seu objetivo fazer uma nova lista, para o estudo sobre intertextualidade (influência de um texto na elaboração de outro) que começou como pós-doutorado. Mas ela começou a encontrar citações desconhecidas. "Aí eu li e reli toda a obra, de maneira que realmente não passasse nada, mas vai que descobrem algum texto novo", diz.

Foi atrás das várias versões de cada obra, já que Machado adiantava escritos em jornais. "'Quincas Borba', por exemplo. Antes ele publicou no jornal e citou Shakespeare. No livro, não. Em 'Memórias Póstumas', antes da dedicatória ao verme, também havia uma citação que foi tirada na primeira edição."

A tabela ajudou a esclarecer algumas questões. Eugênio Gomes (1897-1972) havia concluído que Machado passou a citar mais Shakespeare depois que atores italianos como Ernesto Rossi apresentaram as tragédias no Brasil.

O levantamento mostra, porém, que o número de referências é equivalente, antes e depois dos italianos. O que aconteceu, para Teles, é que depois das temporadas o escritor teria "incorporado Shakespeare ao seu trabalho, como um entrelaçamento".

De modo geral, ela diz que ao longo de toda a sua trajetória Machado "é muito coerente com uma determinada maneira de fazer a intertextualidade, que é ironizar, reconstruir, só que isso vai ficando cada vez mais sofisticado" conforme amadurece.

Ambos apresentam "visão negativa, pessimista, com relação à sociedade", o que os aproxima. Mas "são parte de momentos culturais muito específicos" e, portanto, "criações que faziam sentido na época de Shakespeare tiveram que ser transformadas".

Em contraste com Caldwell, que buscou as semelhanças entre "Otelo" e "Dom Casmurro", Teles se concentrou nas diferenças, apesar das citações todas. "Ele recria 'Otelo' a partir de uma percepção muito própria", diz, "e aí não me parece trágico".

VÍNCULO ENTRE OS DOIS CAUSA FASCÍNIO, DIZ AUTOR

José Luiz Passos estava mergulhado em Machado e Shakespeare quando lançou o estudo "O Romance com Pessoas" pela Edusp em 2007. Chegou a escrever uma peça, "A Guerra de Carmelo", a partir de "Otelo", ecoando o que o escritor brasileiro havia feito com "Dom Casmurro".

Professor de literatura brasileira na Universidade da Califórnia, Passos depois se voltou ele próprio para os romances e, em 2013, recebeu o Prêmio Portugal Telecom por "O Sonâmbulo Amador", pela editora Alfaguara -que reeditou "Romance com Pessoas" em 2014. Em entrevista, ele comenta o fascínio que leva a buscar os elos entre Machado e Shakespeare.

Crédito: Fernanda Fiamoncini/Divulgação SÃO PAULO, SP, BRASIL, 00-12-2013: Literatura: o escritor José Luiz Passos, posa para retrato no Memorial da América Latina, em São Paulo (SP). (Foto: Fernanda Fiamoncini/Divulgação) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
O escritor pernambucano José Luiz Passos

Presença quase total
Já se estudou também Machado e os autores franceses, Machado e a Bíblia. O que diferencia Shakespeare é ser o autor mais citado, de maneira sistemática, ao longo da carreira inteira. Está presente quase que de maneira total. Às vezes nas crônicas, na poesia, no romance, nos contos, nas décadas de 1860, 70, 80, 90. É por isso que os críticos têm certa fascinação.

Literatura inglesa era rara
Outro aspecto é: por que Shakespeare? No século 19, a literatura da América Latina era predominantemente influenciada pela francesa. A inglesa era rara, menos traduzida. Menos pessoas falavam inglês. E Machado faz opção por um autor do Renascimento inglês, uma leitura muito difícil, porque a língua é cerrada. É fascinante.

Shakespeare em francês?
Outra questão: que Shakespeare é esse? Machado nunca foi à universidade, viajou para fora do país ou fez curso de inglês formal, porque não existia. Em que momentos da vida pode ter adquirido inglês sofisticado o suficiente para ler Shakespeare no original e entender? O argumento é que talvez tenha lido em traduções francesas e possivelmente cotejava.

Como poesia, não teatro
No Brasil, só eram traduzidos monólogos. E muito da atenção de Machado é motivada por atores shakespearianos que viajavam pela América Latina declamando monólogos. O que leva a crer que, em muitos casos, o Shakespeare que recebe é o poeta, não o dramaturgo. Se você escuta o "Ser ou não ser", não tem acesso à peça, mas a um trecho lido como poesia.

Incorporando Shakespeare
Com esse entendimento muitas vezes indireto, tortuoso, relativo, mediado por várias línguas e traduções, Machado acaba incorporando aspectos de Shakespeare às obras dele. Essa incorporação não é técnica. É impossível dizer como Machado realmente entendeu "Romeu e Julieta". É difícil, por causa de todas essas variáveis, mas isso leva a questões muito interessantes, por exemplo, de afiliação cultural, de independência literária, de formação do cânone, de formação da alta cultura no Brasil.

Referências a Shakespeare em Machado de Assis

1 'Revista de Teatros', em 'O Espelho', 1859
Não se comenta Shakespeare, admira-se.

2 'Rossi - Carta a Salvador de Mendonça', em 'A Reforma', 1871
Não te falo de Hamlet, de Otelo, que o Rossi tem reproduzido ante o nosso público, fervente de entusiasmo. Um deles, o Hamlet, nunca o tinha visto pelo nosso ilustre João Caetano. A representação dessa obra, a meu ver a mais profunda de Shakespeare, afigurou-se-me sempre um sonho difícil de realizar.

3 'Memórias Póstumas de Brás Cubas', em 'Revista Brasileira', 1880
E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo.

4 'Curta História', em 'A Estação', 1886
Entrou Romeu, elegante e belo, e toda ela comoveu-se; viu depois entrar a divina Julieta, mas os dois não se falavam logo; ouviu-os, porém, falar no baile de máscaras, bebeu de longe as palavras eternamente belas, que iam cair dos lábios de ambos.
5 'Bons Dias!', em 'Gazeta de Notícias', 1888
Há entre o céu e a terra mais acumulações do que sonha a vossa vã filosofia

6 'Quincas Borba', em 'A Estação', 1891
Otelo exclamaria, se a visse: 'Oh! Minha bela guerreira'. Rubião limitara-se a isso, ao começar o passeio: 'A senhora é um anjo!'

7 'A Cena do Cemitério', em 'A Semana', 1894
Sonhei que era Hamlet; trazia a mesma capa negra, as meias, o gibão e os calções da mesma cor. Tinha a própria alma do príncipe da Dinamarca. [...] Também não me aterrou ver, ao pé de mim, vestido de Horácio, o meu fiel criado José Rodrigues. Mas, enfim, como eu era Hamlet e ele Horácio, tudo aquilo devia ser cemitério.

8 'Dom Casmurro', 1899
De noite fui ao teatro. Representava-se justamente Otelo, que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o assunto, e estimei a coincidência. Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço - um simples lenço! [...] O último ato mostrou-me que não era eu, mas Capitu que devia morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público.

MACHADO & SHAKESPEARE: INTERTEXTUALIDADES
AUTOR Adriana da Costa Teles
EDITORA Perspectiva
QUANTO R$ 58 (296 págs.)

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