Crítica
Dramaturgia é credo e ruptura em obras de Mário Bortolotto
O dramaturgo, diretor e ator Mário Bortolotto é codependente do teatro desde a década de 1980. Pouco antes ele foi seminarista por cinco anos. Mas só questionou os eclesiásticos em cena quando montou "O que Restou do Sagrado" (2004), de modo mais assertivo, e em "Homens, Santos e Desertores" (2002), subliminarmente.
Na primeira peça, sete personagens, inclusive o padre, confessam monstruosidades numa igreja, como pedofilia e assassinato, nada arrependidos. Na segunda, um homem solitário e de existência calejada dialoga com um garoto sobre desilusões e o apreço por livros, misto de ascese e pé no chão. "De agora em diante é o horror", vaticina ao rapaz cujo pai, motociclista, desgarrou-se.
Lenise Pinheiro/Folhapress | ||
Mario Bortolotto e Virginia Cavendish em cena de 'O Inferno em Mim' |
Esse motociclista é retomado pelo autor em "O Inferno em Mim" (2012), em nova e curta temporada que permite inferir como Bortolotto fez da dramaturgia um credo. E como esse poeta atrai admiradores, comprova a estreia esta semana de "Morte Entre Amigos", quatro textos curtos de dramaturgos em seus primeiros passos ou nem tanto. Ele dirige e ainda atua num monólogo.
Credo no sentido de manter a coerência de estilo ao absorver a música, a literatura e o cinema como campos nevrálgicos ao encenar e enredar sob o princípio da economia nas frases e nos recursos de cenografia e luz. salvação ou perdição, os atores são a medida de tudo.
A abertura e o desfecho de "O Inferno em Mim" se passam numa igreja. O pai errante da outra história atende por Mancha (Nelson Peres), que mata o pai numa desavença e troca ideias com o melhor amigo, Pluto (Bortolotto).
A prostituta e viciada Gina (Maria Manoella) e a advogada Livia (Virginia Cavendish) interpõem-se, sem submissão, no ódio e no desejo.
O elenco tem intimidade com o autor. Peres resulta vital no trabalho, faz um sujeito esquisitão sem clichê. Cavendish convence como a advogada estranha no ninho e suscetível ao amor do passado. Manoella é desenvolta no papel limítrofe, excedendo na crispação gestual permanente. Bortolotto fala, age, olha como extensão orgânica daquilo que escreve e imagina.
É em "Kenny G", de Lucas Mayor, terceira peça da noite em "Morte Entre Amigos", que o registro de atuação de Bortolotto surpreende. Descolado de sua lavra, ele expande o potencial de comediante numa situação absurda.
Os demais textos e atuações nas peças curtas são exercícios tateantes de tramar palavra, silêncio, paisagem e ação.
A resistência à frente do Grupo Cemitério de Automóveis denota a fé de Bortolotto e parceiros em produzir milagres cênicos e contornar precariedades.
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