Harvey Weinstein também é meu monstro

Crédito: Jordan Strauss/Associated Press Salma Hayek arrives at the Oscars on Sunday, Feb. 26, 2017, at the Dolby Theatre in Los Angeles. (Photo by Jordan Strauss/Invision/AP) ORG XMIT: NYET120
A atriz Salma Hayek

SALMA HAYEK
ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES"

Harvey Weinstein era um cinéfilo apaixonado, um homem disposto a correr riscos, um patrono dos talentos cinematográficos, um pai amável e um monstro.

Por anos, ele foi meu monstro.

Nas últimas semanas, fui procurada por repórteres, que chegaram a mim por diversas fontes, entre as quais minha querida amiga Ashley Judd. Eles queriam que eu falasse sobre um episódio em minha vida com o qual eu imaginava ter feito as pazes, por mais doloroso que tenha sido.

Fiz uma lavagem cerebral em mim mesma, para acreditar que aquilo tudo tinha ficado para trás e que eu havia sobrevivido. Fugi à responsabilidade de me pronunciar com a desculpa de que já havia pessoas suficientes expondo os males do meu monstro. Não considerei que minha voz fosse importante, e tampouco imaginei que faria diferença.

Na verdade, eu estava tentando me esquivar do desafio de explicar diversas coisas às pessoas que amo: o fato de que, quando mencionei casualmente ter sido intimidada por Harvey, como tantas outras mulheres, deixei de fora alguns detalhes. E o motivo para que eu tenha continuado a tratar cordialmente, por tantos anos, um homem que me feriu de maneira tão profunda. Minha capacidade de perdoar era motivo de orgulho para mim, mas o simples fato de que eu tivesse vergonha de descrever os detalhes daquilo que havia perdoado me levou a questionar se aquele capítulo de minha vida havia de fato sido resolvido.

Quando tantas mulheres vieram a público para descrever o que Harvey havia feito com elas, tive de encarar minha covardia e aceitar humildemente que minha história, por mais importância que tivesse para mim, não era mais que uma gota em um oceano de pesar e confusão. Senti que, a esta altura, ninguém se incomodaria com a minha dor –talvez como efeito de ter ouvido tantas vezes, especialmente de Harvey, que eu era ninguém.

A variedade de suas táticas de persuasão era enorme –de me pedir alguma coisa docemente à ocasião em que, em um ataque de fúria, ele proferiu palavras aterrorizantes: "Eu te mato, não ache que não tenho como fazê-lo".

Quando ele por fim se convenceu de que eu não estava disposta a conquistar o direito de fazer meu filme do jeito que esperava, Harvey me informou de que havia oferecido meu papel e meu roteiro, para o qual pesquisei durante anos, a outra atriz.

Aos olhos dele, eu não era artista. Não era nem mesmo uma pessoa. Era uma coisa –não era ninguém, mas era só um corpo.

Àquela altura, tive de recorrer a advogados, não para um processo por assédio sexual, mas para afirmar que ele havia negociado de má fé, e não pretendia produzir e nem me revender os direitos de um filme no qual trabalhei por tantos anos. Tentei tirar o filme de sua empresa.

Ele afirmou que meu nome não era conhecido o suficiente, como atriz, e que eu era incompetente como produtora; para se proteger legalmente, ou assim entendi, ele me passou uma lista de tarefas impossíveis, com prazo muito curto.

1. Reescrever o roteiro, sem pagamento adicional.

2. Levantar US$ 10 milhões para financiar o filme.

3. Conseguir um diretor de primeira linha.

4. Encontrar atores importantes para quatro dos papéis coadjuvantes.

Para espanto de todos, especialmente de mim mesma, consegui cumprir as exigências, graças a uma falange de anjos que saíram em meu socorro, entre os quais Edward Norton, que reescreveu o roteiro lindamente, diversas vezes e –o que é inadmissível– jamais levou crédito por isso, e minha amiga Margaret Perenchio, que investiu o dinheiro necessário, em sua estreia como produtora de cinema. A brilhante Julie Taymor aceitou dirigir o filme, e se tornou uma aliada sólida. Para os papéis, recrutei meus amigos Antonio Banderas, Edward Norton e a querida Ashley Judd. Até hoje não sei como convenci Geoffrey Rush, a quem mal conhecia então.

Harvey Weinstein não só havia sido rejeitado como estava a ponto de produzir um filme que não desejava fazer.

Ironicamente, assim que começamos a filmagem, o assédio sexual parou mas a raiva se redobrou. Pagamos, a cada dia de filmagem, o preço por resistir às suas demandas. Ele disse em uma entrevista que eu e Julie éramos as mulheres mais intragáveis que já havia conhecido, o que encaramos como elogio.

Mais ou menos na metade das filmagens, Harvey foi ao estúdio e reclamou da "monocelha" de Frida. Ele exigiu eu que parasse de mancar ao interpretá-la, e criticou meu desempenho. Depois, pediu que todo mundo mais saísse da sala, e me disse que a única coisa que eu tinha de interessante era meu sex appeal, e que ele não aparecia no filme. E disse que ia encerrar as filmagens, porque ninguém ia querer me ver naquele papel.

Foi devastador, porque –confesso perdida no nevoeiro de uma espécie de síndrome de Estocolmo– eu queria que ele me visse como artista: não só como uma atriz capacitada mas como alguém capaz de identificar uma história interessante, e dotada da visão necessária para contá-la de maneira original.

Minha esperança era de que ele me desse crédito como produtora, porque além de cumprir todas as exigências de sua lista, eu comandei o desenvolvimento do roteiro e obtive as licenças para usar as pinturas de Frida. Negociando com o governo mexicano, e com quem mais fosse necessário, consegui locações que jamais haviam sido autorizadas no passado –entre as quais as casas de Frida Kahlo e os murais de seu marido, Diego Rivera, entre outras.

Mas tudo isso parecia não ter valor. A única coisa que ele percebia é que eu não estava sexy no filme. Ele me fez duvidar do meu talento como atriz, mas jamais me convenceu a acreditar que não valia a pena fazer o filme.

Ele me ofereceu uma opção, se eu quisesse continuar: permitiria que eu concluísse as filmagens se eu aceitasse fazer uma cena de sexo com outra mulher. E exigia nudez frontal.

Ele não parava de pedir mais sexo, mais pele exposta. Já em uma ocasião anterior, Julie Taymor o convenceu a aceitar um tango terminado em beijo, em lugar da cena de sexo que ele queria ver entre a personagem Tina Modotti, interpretada por Ashley Judd, e Frida.

Crédito: Divulgação ORG XMIT: 535301_0.tif Cinema: cena de "Frida", filme de Julie Taymor com Salma Hayek (dir.) e Ashley Judd (centro) sobre a vida da pintora mexicana Frida Khalo. (Divulgação
Cena de "Frida", com Ashley Judd (centro) e Salma Hayek

Mas naquele dia se tornou claro para mim que ele jamais me permitiria concluir o filme se sua fantasia não fosse realizada, de um jeito ou de outro.

Eu tive de dizer sim. Àquela altura, já havia investido muitos anos de minha vida no filme. Estávamos rodando há cinco semanas, e eu havia convencido muito gente talentosa a participar. Como eu poderia permitir o desperdício de todo aquele trabalho magnífico?

Eu havia pedido muitos favores, e sentia uma pressão imensa para concluir o trabalho com sucesso, e profunda gratidão às pessoas que haviam acreditado em mim e me acompanhado naquela loucura. Por isso concordei em fazer aquela cena insensata.

Cheguei ao estúdio no dia em que a filmaríamos a cena que, para mim, salvaria o filme. E pela primeira e última vez em minha carreira, tive um ataque de nervos. Meu corpo começou a tremer incontrolavelmente, e eu chorava sem parar, e não conseguia parar. As lágrimas simplesmente jorravam.

Porque as pessoas que me cercavam não conheciam minha história com Harvey, se surpreenderam demais com minhas dificuldades naquela manhã. O problema não era estar nua com outra mulher. Era estar nua com ela para Harvey Weinstein. Mas eu não podia lhes dizer a verdade, então.

Minha mente compreendia que eu tinha de fazer a cena, mas meu corpo não conseguia parar de chorar e tremer. Comecei a vomitar, enquanto o estúdio, como que congelado, aguardava o início da filmagem. Tive de tomar um tranquilizante, o que pôs fim ao choro mas me fez vomitar mais. Como você pode imaginar, nada disso tinha coisa alguma de sexy, mas foi só assim que consegui fazer a cena.

Quando as filmagens foram concluídas, eu estava tão arrasada emocionalmente que me distanciei da pós-produção.

Harvey viu a versão editada, e disse que o filme não era bom o bastante para exibição em salas de cinema, e que o distribuiria diretamente em vídeo.

Julie teve de brigar contra isso sem minha ajuda, e conseguiu que ele concordasse em lançar o filme, em uma única sala de cinema em Nova York, se o testássemos junto à audiência e conseguíssemos pelo menos 80% de aprovação.

Menos de 10% dos filmes conseguem 80% de aprovação em sua primeira exibição de teste.

Não fui ao teste. Fiquei aguardando notícias, ansiosamente. O filme conseguiu 85% de aprovação.

E, segundo me disseram, Harvey teve mais um de seus ataques de raiva. No saguão de um cinema, depois de uma exibição, ele gritou com Julie. Amassou um dos papéis com os comentários dos espectadores e o jogou nela. Elliott Goldenthal, o parceiro de Julie, e compositor da trilha do filme, interferiu, e Harvey o ameaçou fisicamente.

Quando ele se acalmou, consegui encontrar a força de telefonar para ele e pedir que o filme fosse exibido também em uma sala de cinema em Los Angeles. Isso elevaria o total a duas salas. Ele cedeu sem protestar demais. Tenho de dizer que havia momentos em que ele era gentil, divertido, mordaz –o que era parte do problema: você nunca sabia que Harvey teria pela frente.

Meses depois, em outubro de 2002, o filme, sobre minha heroína e minha inspiração –uma artista mexicana que, com sua monocelha e seu andar claudicante, jamais recebeu o reconhecimento merecido em vida–, o filme que Harvey jamais quis produzir, lhe propiciou um sucesso de bilheteria que ninguém ousaria esperar e, a despeito de sua falta de apoio, aumentou em seis indicações ao Oscar a sua coleção –entre os quais uma indicação para o prêmio de melhor atriz.

Mesmo que "Frida" lhe tenha valido dois Oscars, não vi alegria alguma da parte dele. Harvey jamais me ofereceu um papel principal em outro de seus filmes. Os trabalhos que fui obrigada a fazer pelo meu contrato original com a Miramax envolviam apenas papéis coadjuvantes.

Anos mais tarde, quando me encontrei com ele em um evento, Harvey me puxou para o canto e disse que tinha parado de fumar e que tinha sofrido um ataque cardíaco. Disse que tinha se apaixonado por Georgina Chapman e se casara com ela, e que era um homem mudado. Por fim, ele disse: "Você foi bem em 'Frida'. Fizemos um lindo filme".

Acreditei nele. Harvey jamais saberia o quanto essas palavras significaram para mim. Ele também jamais saberia o quanto me feriu. Jamais mostrei a Harvey o quanto ele me aterrorizava. Quando me encontrava com ele socialmente, sorria e tentava lembrar das boas coisas nele, e dizia a mim mesma que fui à guerra e venci.

Mas por que tantas de nós, mulheres artistas, precisamos ir à guerra para contar nossas histórias, quando temos tanto a oferecer? Por que precisamos lutar ferozmente para proteger nossa dignidade?

Acredito que seja porque nós, como mulheres, fomos desvalorizadas artisticamente e reduzidas a um estado indecente, a tal ponto que a indústria do cinema deixou de se esforçar para descobrir o que as audiências femininas desejam ver e que histórias queremos contar.

De acordo com um estudo recente, entre 2007 e 2016, apenas 4% dos filmes foram dirigidos por mulheres, e 80% destas cineastas só tiveram a oportunidade de dirigir um filme. Em 2016, de acordo com outro estudo, apenas 27% do diálogo dos maiores filmes coube a mulheres. E as pessoas estranham não terem ouvido nossas vozes mais cedo. Creio que as estatísticas são autoexplicativas: nossas vozes não são bem-vindas.

Até que haja igualdade em nosso setor, com homens e mulheres tendo igual valor em todos os aspectos dele, nossa comunidade continuará a ser solo fértil para predadores.

Sou grata a todos que estão ouvindo nossas experiências. Espero que acrescentar minha voz ao coro daquelas que enfim estão se pronunciando iluminará por que é tão difícil fazê-lo, e por que tantas de nós esperaram tanto para isso. Os homens que praticam assédio sexual o fazem porque podem. As mulheres estão falando hoje porque, nesta nova era, enfim podemos fazê-lo.

SALMA HAYEK (@salmahayek) é atriz e produtora

Tradução de PAULO MIGLIACCI

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