Escritos prévios de Marcel Proust foram prévia de sua obra-prima

MARCELO BACKES
ESPECIAL PARA A FOLHA

CONTRA SAINTE-BEUVE (muito bom) * * * *
AUTOR Marcel Proust
TRADUÇÃO Luciana Persice Nogueira
EDITORA Âyiné
QUANTO R$ 39 (308 págs.)

Marcel Proust é tão importante que até obras fragmentárias publicadas 30 anos após sua morte na França ganham segunda edição no Brasil. É o caso de "Contra Sainte-Beuve", que sai pela Âyiné –e já havia sido publicado pela Iluminuras em 1988.

"Contra Sainte-Beuve" mostra uma vez mais que Proust fez uma série de exercícios preparatórios para sua obra-prima, trabalhando em escritos que não passam de rios prévios que escoarão no grande e profundo estuário de seu livro maior.

Já no início vemos que a célebre "madeleine" de "Em Busca do Tempo Perdido" foi uma fatia de torrada bem menos poética, mas que já desperta a mesma sensação evocada pela ativação da memória involuntária.

"A cada dia, atribuo menos valor à inteligência", a primeira frase do livro, antecipa as invectivas poéticas de Guimarães Rosa contra o saber cartesiano.

Crédito: Hulton Archive/Getty Images Marcel Proust fotografado por volta de 1910
Marcel Proust fotografado por volta de 1910

Incapaz de despertar as horas mortas do passado, essa inteligência corresponde aos conceitos do mundo causal-mecânico denunciados por Bergson, que não passam de roupas folgadas, porque só intuições como as proustianas, rosianas, musilianas e outras são modelos da alta-costura capazes de delinear com perfeição os contornos de objetos e sensações.

Ao partir para a análise da obra crítica de Sainte-Beuve, porém, Proust diz, sem qualquer ingenuidade, que, mesmo reconhecendo a inferioridade da inteligência,só ela poderá estabelecer sua própria inferioridade.

Se não merece a coroa suprema, só a ela cabe concedê-la e proclamar o instinto merecedor do primeiro lugar na hierarquia das virtudes.

Proust denuncia Sainte-Beuve por não reconhecer o valor de Stendhal e mudar de opinião sobre Victor Hugo e Lamartine de acordo com seus sentimentos pessoais.

As injustiças contra Baudelaire são destrinçadas, assim como o desprezo a Nerval por causa de sua vida dissoluta.

Vemos ainda que o apreciador de Balzac não era o barão de Charlus, mas certo conde de Guermantes. A marquesa de Villeparisis já aparece com os contornos que teria na obra-prima, inclusive ao dizer que Balzac nem sequer conhecia a alta sociedade que pretende descrever.

Romain Rolland é abordado como exemplo de arte utilitária que jamais chegará às profundezas da alma humana. E sobra espaço para metáforas de talhe grandioso: "Não é difícil fazer o trajeto a galope quando se começa, antes de partir, por deitar ao rio todos os tesouros que se tinha a carregar. Só que a rapidez da viagem é assaz indiferente, pois, à chegada, nada se traz consigo".

Em suma, Proust ridiculariza Sainte-Beuve por acreditar que o salão é indispensável à literatura e achar que a vida do homem ajuda a esclarecer a obra do autor e diz que o crítico atrela sua carruagem aos pangarés da política e da sociedade, em vez de fazê-lo ao corcel das estrelas, como quer Emerson.

Em seu essencialismo iluminado, Proust diz que um artista dá ao público as elaborações da solidão, na qual é um eu diferente do eu mascarado que apresenta ao salão e que os livros grandiosos são filhos do silêncio e não têm nada em comum com os filhos da palavra, os pensamentos nascidos do desejo de dizer algo.

Já no prefácio aparece a sucessão de sensações que lhe permitirão, no último volume de sua obra maior, acessar a essência do passado e recuperar o tempo perdido, dando aos tubos de ensaio isolados da experiência os vasos comunicantes da recordação e concedendo à vida um sentido que ela não teve enquanto foi vivida.

MARCELO BACKES, escritor e tradutor, doutor pela Universidade de Freiburg, é autor de "O Último Minuto" (Companhia das Letras)

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