Desencanto pós-Trump e perda da fé guiam comédia 'Crashing'

Crédito: Divulgação Pete Holmes e Lauren Lapkus em cena da série cômica 'Crashing', cuja segunda temporada está em cartaz na HBO
Pete Holmes e Lauren Lapkus em cena da série cômica 'Crashing'

SILAS MARTÍ
DE NOVA YORK

Pete Holmes perdeu a fé em Deus, mas não na comédia. O personagem do criador e ator principal de "Crashing" decide virar ateu depois de uma conversa sobre espiritualidade na mesa de um bar de stand-up e passa a buscar respostas para questões existenciais no sexo e na bebida.

Sua ressaca é monumental. Na vida real e na série, que chega agora à segunda temporada na HBO, Holmes é um comediante que tenta arrancar gargalhadas de um público afundado na desilusão com a política, exausto e às vezes um tanto paranoico.

Não por acaso, ele se chama Pete dentro e fora de cena. Os americanos que o observam sentados no sofá também padecem do mesmo mal da plateia nos bares retratados ali –o clima tenebroso sob a tempestade chamada Donald Trump abala os campos da ficção e da realidade.

Na longa e rica tradição das sitcoms nos Estados Unidos, "Crashing" é mais uma sobre a rotina nem sempre hilária de um comediante, lembrando "Seinfeld", a maior de todas elas, mas parece extrair parte de sua força nada desprezível de um momento em que o mundo se choca com as atitudes de uma celebridade birrenta na Casa Branca.

"Quanto menos estável é o planeta, mais vital é a comédia", disse Holmes, no lançamento da segunda leva de episódios, em Nova York. "Quando nosso pânico aumenta, também aumenta a necessidade de sentir alívio."

Nesse ponto, o humor num país rachado ao meio opera como antídoto ao horror da política. Enquanto Trump estarrece o mundo e os americanos –e Holmes se encaixa entre os que se dizem envergonhados pelo presidente–, comediantes ganham fôlego.

Se o ex-apresentador do reality "O Aprendiz" amarga os piores índices de aprovação de um presidente a essa altura de seu mandato, o humor dos talk shows da noite e clássicos como o "Saturday Night Live", humorístico transmitido ao vivo nas noites de sábado pela NBC, saem revigorados pela insensatez que reina agora sobre Washington.

Trump, nesse sentido, é menos um presidente e mais um bobo da corte. Virou a base do humor num país azedo.

Em "Crashing", pelo menos nos primeiros episódios da nova temporada, não há qualquer menção ao homem no comando da Casa Branca.

Mas os contornos sombrios do Pete da ficção, sua descida a um patamar insondável no panteão dos perdedores –ele foi largado pela mulher, mora na garagem da casa do amigo, sua carreira não decola e ele paga as contas trabalhando numa sorveteria–, espelha o desencanto atual.

No lugar do "spleen", a melancolia dos românticos, Holmes dá corpo a um humor resignado, quase inconsolável. Ele encarna o arquétipo de quem já não teme levar uma rasteira –as pancadas são tantas que a dor se torna um sentimento amorfo, o impulso abstrato para seguir adiante e não sentir coisa alguma.

Essa anestesia geral separa "Crashing" de algo como "Seinfeld". A sitcom que marcou a década de 1990 e entrou para a história com o apelido de "programa sobre nada" era na verdade um manifesto ácido pelas idiossincrasias do estilo de vida americano, a banalidade cáustica de uma vida sem grandes problemas.

Holmes vai na contramão disso. "Crashing" faz rir sobre o fracasso de um homem que luta para juntar os cacos do que sobrou do "American way of life", a coisa mais ameaçada pelo homem alaranjado que prometeu fazer a "América grande de novo".

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