Monólogo 'O Desmonte' peca por inverossimilhança

Crédito: Lenise Pinheiro/Folhapress O ator Vitor Placca na peça 'O Desmonte
O ator Vitor Placca na peça 'O Desmonte'

BRUNO MACHADO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O DESMONTE (regular) * *
QUANDO seg. e ter., às 20h; até 27/2
ONDE Sesc Consolação - espaço beta, r. Dr. Vila Nova, 245, tel. (11) 3234 3000
QUANTO R$ 6 a R$ 20
CLASSIFICAÇÃO 14 anos

Pestes urbanas que perturbam personagens solitários abundam na ficção: em "A Metamorfose", de Franz Kafka, a barata é signo de tudo aquilo que escapa à moralidade; em "A Paixão Segundo G.H.", de Clarice Lispector, o inseto cascudo atravessa os limites da linguagem.

Já no monólogo "O Desmonte", do dramaturgo Amarildo Félix, um rato atormenta um homem anônimo interpretado por Vitor Placca. O roedor em questão, contudo, carece de força poética.

O personagem de Placca fracassa duplamente em superar o fim de um relacionamento e dar cabo da vida do animal, que escapa, ora como metáfora do amante, ora do ser amado –é a materialização da crise que rói as estruturas do apartamento onde vive o protagonista.

A premissa sugere um monólogo denso; a ideia é corroborada pela ambiciosa empreitada de Félix e Placca –informa o programa do espetáculo– de propor uma nova linguagem para um tema antigo: o amor. O resultado, contudo, soa anacrônico.

Em tempos de amor líquido e aplicativos de encontros, o lamento do personagem sobre o fim do enlace é carregado por um exagero literário que parece extraído de um folhetim do século 19. A rebuscada lamúria só é interrompida por uma voz feminina que, em tempos de WhatsApp, grava recados em uma secretária eletrônica.

Os elementos folhetinescos e o tom melodramático da dramaturgia de Félix, também diretor da montagem, dificultam o mergulho no drama do protagonista. Econômicos, por sua vez, o figurino, a iluminação e a cenografia tampouco colaboram para situar o espectador no imundo apartamento sugerido pelo texto.

Placca também é vítima desses obstáculos. Tem pouco espaço para criar –à exceção das poucas cenas em que personifica o roedor e acrescenta camadas mais interessantes à montagem.

Um súbito aumento de tom marca o terço final do solo: o lamento piegas dá lugar a uma frouxa crítica social. Há um notável esforço em estabelecer contato com a plateia, espelhar a fragmentação do universo íntimo do personagem no mundo exterior, e situar o espetáculo no tempo presente. A tonalidade pueril, contudo, compromete novamente a investida.

A verossimilhança não é um dogma que o teatro deve obedecer cegamente. Contudo, em "O Desmonte", estabelecer um universo mais consistente, em detrimento de metáforas desgastadas e críticas rasas, ajudaria o espectador a compartilhar da dor do personagem.

Assim, o monólogo se assemelha a uma ratoeira enguiçada: da mesma forma que o rato escapa às mãos de Placca, o frágil drama não se sustenta e desmancha entre os elementos inverossímeis da dramaturgia.

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