Paul Bocuse foi marqueteiro ao limite, mas do bem

Crédito: AFP O chef Paul Bocuse (centro, de chapéu mais alto) e sua equipe rodeada por animais em restaurante em Lyon, França, em 1973
O chef Paul Bocuse (centro, de chapéu mais alto) e sua equipe em restaurante em Lyon, em 1973

JOSIMAR MELO
COLUNISTA DA FOLHA

O chef francês Paul Bocuse, morto dia 20 aos 91 anos, merece ser lembrado não apenas como o grande cozinheiro que vem sendo louvado, mas também por outros aspectos que ficam fora da cozinha.

Ele foi um chef talentoso e habilidoso. Soube manejar com maestria a cozinha clássica. E surfou com desenvoltura nas ondas da "nouvelle cuisine", que estrelou com contemporâneos (Troisgros, Guérard, Chapel, Vergé, sem falar nos jornalistas Gault e Millau, que batizaram e sistematizaram o caminho que os chefs trilhavam intuitivamente).

Mas Bocuse não parou na cozinha. A começar pelas famosas voltas que dava no salão do restaurante, entre os clientes. Depois de eras em que o cozinheiro era um operário anônimo na cozinha, as aparições estimularam o reconhecimento –e o enaltecimento– de uma profissão.

MARKETING

Veio daí o exagero posterior de fazer do cozinheiro um superstar, celebridade fútil, um objeto de desejo. Mas são bobagens que não devem ofuscar o fato de que merecem o reconhecimento por um trabalho tão árduo quanto criativo, antes quase ignorado.

Bocuse foi um marqueteiro até exagerado. Montava quase maquinalmente a pose, braços cruzados, para as fotos, ficando imóvel como um boneco. Não hesitava em colocar seu nome em produtos industriais de qualquer tipo, de panelas a congelados.

Sem qualquer modéstia, inventou um prêmio para jovens chefs que, mesmo ainda em vida, levava seu próprio nome, o Bocuse d'Or, uma rara forma de auto-homenagem. Criou a sopa de trufas en croûte para o paspalho que ocupava a Presidência da França (mas ok, o cara havia lhe dado uma medalha e tanto... e o nome da sopa leva apenas as iniciais de Giscard, VGE, e as pessoas de bem preferem chamá-la de soupe Élysée, referência ao palácio que pertence a toda a França).

Mais: tinha a cara de pau de mudar sem piscar conforme soprasse o vento. Quando lhe perguntei, numa conversa uns 20 anos atrás, o que achava dos caminhos caricatos que havia tomado a popularização da nouvelle cuisine ("louças enormes, porções minúsculas, preços gigantescos"), disse que simplesmente não era algo que lhe dizia respeito, já que nunca tivera nada a ver com o movimento... segundo ele, sempre havia se mantido na cozinha clássica (mas antes, no auge, jamais renegou quem o tratava como o "pai da 'nouvelle cuisine' ).

GUIAS

Quando o chef Bernard Loiseau se matou em 2003 (dizia-se que foi por ter perdido uma estrela, mas não perdera –matou-se por instabilidades mentais agravadas por gigantescas dívidas) Bocuse praguejou contra os guias gastronômicos –jamais reclamou deles quando os guias fizeram de seu restaurante na pequena Collonges-au-Mont-d'Or um destino de peregrinação de leitores de todo o mundo.

E para que tudo isso? Para inflar seu ego, ganhar fama e fortuna? Provavelmente também sim (a começar porque era um ser humano). Mas o importante para a gastronomia é que Paul Bocuse foi não somente um marqueteiro: foi o marqueteiro do bem, que usou seu talento de cozinheiro para promover sua região, seus colegas, sua categoria profissional, seu país.

PANELINHA

Bocuse esteve sempre cercado por grandes chefs, em ambientes onde sobressaía não a competição e o ciúme, mas uma aura quase de família. Como em qualquer meio, tinha sua turma, que não era necessariamente a de todos os chefs da França, às vezes até por divergências conceituais levantadas por outros grupos.

Mas naquilo que fazia (não só no que falava) –até mesmo no prêmio que imodestamente levava seu nome– era sempre enaltecendo cozinheiros, especialmente os franceses.

Discursos corporativos e nacionalistas são sempre fáceis, demagógicos. Passar a uma prática em que o topo do prestígio adquiridos na profissão sejam colocados a favor desta mesma profissão e de seus colegas é o que raramente se vê, já que no mundo da cozinha é mais fácil imperar uma danosa competição.

O que se faz na Espanha, no Peru e no México, teve, percebam eles ou não, uma semente colocada pela atuação de décadas do superstar Paul Bocuse. Quem sabe um dia ela também dê frutos no Brasil.

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