Genial e mal-humorado, Mark E. Smith fará falta

Crédito: Getty Images O músico Mark E Smith em janeiro de 2017 durante um show da banda The Fall em Liverpool
O músico Mark E Smith em janeiro de 2017 durante um show da banda The Fall em Liverpool

ANDRÉ BARCINSKI
COLUNISTA DA FOLHA

Mark E. Smith, o genial ranzinza que por mais de quatro décadas liderou a banda inglesa The Fall, morreu dia 24, aos 60 anos. A causa ainda não foi revelada.

Smith sofria de problemas de saúde havia cerca de um ano. Em agosto de 2017, cancelou datas nos EUA devido a problemas respiratórios. Em outubro do mesmo ano, chegou a fazer um show numa cadeira de rodas.

Mark E. Smith nasceu numa família proletária em Broughton, Inglaterra, mas logo se mudou para a região de Manchester, norte do país. Em 1976, aos 19 anos, fundou com dois amigos a banda The Fall. O nome, "A Queda", foi inspirado pelo romance de um de seus escritores prediletos, Albert Camus.

O som do Fall, pelo menos no início, era pesado e abrasivo, inspirado tanto pela cena punk do período (Sex Pistols, Ramones) como por bandas de garagem dos anos 60, como Sonics e Trashmen.

Mas ele também tinha um gosto pela experimentação sonora de grupos alemães –como Can, Faust e Neu!– e por iconoclastas do rock, como Captain Beefheart e Frank Zappa. Assim, sua música foi tomando um rumo cada vez mais estranho e imprevisível.

Com o passar dos anos, classificar o som do The Fall tornou-se impossível: cada disco era diferente, espelhando as incontáveis ideias e inspirações que brotavam na imaginação fértil de Smith. Quem melhor definiu o Fall foi o radialista inglês John Peel (1939-2004), um dos maiores fãs da banda: "Sempre diferente, mas sempre o mesmo".

Nesses 40 anos, só uma coisa não mudou no Fall: o próprio Smith. Ele governou a banda como um monarca, despedindo músicos a torto e a direito (uma contagem recente chegou a quase 70 integrantes) e dominando as composições da banda.

Seu mau humor se tornou objeto de lenda: jornalistas que se aventuravam a entrevistá-lo eram recebidos com respostas evasivas e tiradas venenosas; bandas de que Smith não gostava (e ele gostava de poucas) eram escorraçadas em declarações que traziam sua acidez típica.

A música do Fall nunca fez sucesso comercial. Apenas um de seus 32 LPs, "Infotainment Scan" (1993), chegou ao Top 10 no Reino Unido (foi número 9 por três semanas). Um dos maiores "hits" da banda nem era composição de Smith, mas "Victoria", clássico do grupo The Kinks.

O Kinks, aliás, era uma das principais influências musicais de Smith, especialmente nas narrativas sobre a vida proletária e suburbana inglesa. Ele dividia com o letrista do Kinks, Ray Davies, o gosto por histórias de pessoas comuns e suas vidas mundanas.

Outro tema que sempre interessou aos dois foi a transformação tecnológica da sociedade e como ela mudava –sempre para pior, na opinião dos dois– o cotidiano das pessoas. Smith e Davies eram saudosistas, que viam a modernidade e o consumismo como marcas de uma certa perda da identidade britânica.

Com Mark E. Smith no comando, o The Fall se tornou uma verdadeira entidade da cena independente inglesa. Modas e gêneros chegavam e sumiam –pós-punk, new wave, a cena "rave" de Manchester, o britpop, o grunge– e o Fall continuava de pé, enquanto Smith prosseguia em sua missão de não ter missão, de sempre fazer o que lhe desse na telha, lançando discos quando queria, mudando a formação como quem troca de roupa e nunca, mas nunca, dando explicações a ninguém.

Numa indústria musical cada vez mais corporativa, em que artistas usam pesquisas e redes sociais para analisar o público e decidir o que fazer, Smith fará muita falta.

Foi um artista único, que deixou uma obra personalíssima. Um criador que nunca levantou bandeiras ou assinou manifestos, simplesmente porque não se importava com o que pensavam dele e sempre desprezou a manada.

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