A informalidade está substituindo a formalidade, diz chef Ferrán Adrià

De passagem por São Paulo, catalão diz que restaurantes devem propor cozinha popular, mas criativa

JOSIMAR MELO
São Paulo
O chef Ferran Adrià em visita a São Paulo - Folhapress

O restaurante do futuro imediato, que já está nascendo, é um restaurante não apenas onde se come bem, mas que também é informal, barato, divertido.

Quem faz esse prognóstico é alguém que ganhou fama num lugar muito diferente. Ferran Adrià era o chef de cozinha do extinto El Bulli, na Costa Brava espanhola, um lugar elegante, de serviço impecável, uma cozinha de vanguarda, caro e com grande estresse inicial para o cliente —a lista de espera tinha 8.000 pessoas, e conseguir um lugar podia levar um ano.

Adrià foi trabalhar no restaurante em 1984, fazendo cozinha francesa; dez anos depois, além de chef, já era sócio e inaugurava (com seu irmão Albert) uma gastronomia arrojada e inovadora.

Em 1997 conquistou três estrelas no guia "Michelin", e ganhou fama mundial quando, em 2003, o jornal americano "The  New York Times" dedicou-lhe a capa de sua revista dominical, com a chamada "Como a Espanha se Tornou a Nova França". (No ano seguinte seria capa da revista do francês "Le Monde".)

O fenômeno do El Bulli virou o centro das discussões sobre uma nova cozinha, rica em técnicas inovadoras e com resultados que surpreendiam (às vezes desnorteavam) o paladar.

A criação de pratos era intensa (o cardápio mudava integralmente todo ano, perfilando quatro ou cinco dezenas de novas e inesperadas receitas); até que essa febril atividade se interrompeu em 2011, com a decisão de fechar o restaurante e transformá-lo numa fundação de pesquisas.

"No restaurante não temos tempo para investigar, temos que criar pratos", diz Ferran Adrià, que, aos 55 anos, dedica a maior parte de seu tempo à El Bulli Foundation, que agrupou perto de cem pessoas não em torno de fogões, mas de mesas com computadores, paredes com gráficos, salas de discussão de um laboratório em Barcelona, agora desativado para mudança para uma nova sede.

O objetivo é ambicioso: sistematizar todo o conhecimento da gastronomia, com uma metodologia multidisciplinar que permita aplicar esse repertório de forma prática na culinária e na restauração.

O cenário para esse próximo passo prático, a nova sede que está sendo erguida, será a cala Montjoi --a pequena baía onde funcionava o restaurante, para onde o chef vai se mudar com a mulher, Isabel, que também trabalha na fundação.

Em visita a São Paulo nesta semana, Adrià esteve com a Folha em duas ocasiões.

Primeiro, durante um jantar no restaurante A Casa do Porco; depois, numa entrevista na sede da Vivo.

A empresa —que pertence à espanhola Telefónica, da qual Adriá é embaixador e que é a principal patrocinadora de sua fundação— trouxe o chef para ministrar palestras e workshops internos sobre inovação e criatividade —eixos que norteiam seu trabalho atual. Leia a seguir trechos das conversas.

Cozinhar

Hoje eu cozinho comendo. Comer é tão importante quanto cozinhar. Já nos últimos anos do El Bulli meu trabalho não era cozinhar, era criar, comer e analisar continuamente, para abrir novos caminhos. Na cozinha do restaurante deve haver um chef, como tínhamos vários, mas o cozinheiro-proprietário tem que estar pensando e controlando a qualidade, mais do que cozinhando.

Pesquisa

No restaurante não temos tempo para investigar, temos que criar pratos. Na El  Bulli  Foundation criamos conteúdo de máxima qualidade, com experts de várias áreas. Nas instalações da cala Montjoi (chamadas de El  Bulli 1846) vamos convocar os melhores chefs do mundo para períodos de algumas semanas de pesquisa prática, com cientistas, psicólogos, jornalistas etc., para investigar metodologias de trabalho e aprender como inovar com eficiência. Como resultado prático esperamos criar tudo novo --um novo modelo de gestão, de serviço, de network, de cardápio, de decoração, tudo. Teremos um site difundindo e ordenando o conhecimento produzido.

Paradigmas

Vamos lançar livros procurando sistematizar tudo o que diz respeito à cozinha e ao restaurante. Usamos o conhecimento que já foi acumulado, mas tentando reorganizá-lo do zero, inclusive questionando coisas que parecem óbvias e estabelecidas. Fazer vinho é cozinhar? O padeiro é um cozinheiro? Num restaurante quem cozinha é só o cozinheiro ou também quem come? (Afinal, dependendo do ponto em que o cliente pede a carne, a forma como corta o alimento, a ordem em que come as coisas ou as mistura, a quantidade de manteiga que passa no pão, tudo isso produz gostos diferentes.)

Livros

Nos próximos meses a fundação vai lançar 12 livros de 600 páginas cada um, para ajudar os profissionais a compreenderem a cozinha e o que é um restaurante. Haverá sete só sobre produtos, sobre a classificação dos alimentos em 70 categorias. E três sobre vinhos, somando 2.000 páginas.

Restaurante

Acho que o formato de restaurante para o momento é como este [A Casa do Porco]: informal e com uma cozinha popular, mas criativa. A informalidade está substituindo a formalidade. Sempre existiram restaurantes divertidos, mas em geral não se comia bem. Lugares como este, ou o Tickets [tocado por seu irmão Albert  Adrià, em Barcelona] têm esta diferença, agora se come bem. E são muito interessantes como modelo de negócio. Às vezes vou a restaurantes formais, como o Via Veneto de Barcelona, onde até se come bem, mas vou mais para ver o passado --levo meu sobrinho e digo "antes o mundo era assim".

Vanguarda

Na cozinha de vanguarda chega-se a limites; é difícil saber até onde se pode ir, até onde vai o limite do comer. São poucos os lugares onde se pode viver esta experiência, proporcionada por chefs como Andoni Aduriz [do Mugaritz, na Espanha], René  Redzepi [do Noma, na Dinamarca], Grant  Achatz [do Alinea, nos EUA].

Japão

Em minhas viagens, o que mais tem me impressionado, como sempre, é o Japão. E agora descobri o que tanto fascina um ocidental naqueles pequenos restaurantes de kaiseki [menu de vários pratos]: é a estética. Se fosse levada para consumir em outro lugar, aquela mesma comida pareceria diferente, seria outra experiência. Mas aquele ambiente, com a pessoa trabalhando na sua frente, te servindo e explicando aquela cultura diferente, a história de cada prato, a intimidade de ter só oito clientes cria uma experiência estética que encanta.

Comer fora

Quando saio para comer em um restaurante, sempre tomo minhas precauções. Primeiro, chego cedo: é quando se pega o time descansado, e ainda não está no momento de maior estresse. Segundo, se é um lugar importante e que não conheço, procuro informações na internet, para já saber o que fazem, quais as especialidades, o que têm de melhor. E, terceiro, procuro não correr risco, nunca peço o que talvez não façam bem, sempre peço o que sabem fazer de melhor.

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