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​​Imaturidade do vídeo sob demanda deixa público sem acesso a ícones nacionais

Cena de "Dona Flor e Seus Dois Maridos", com Mauro Mendonça, Sônia Braga e José Wilker - Divulgação
GUSTAVO FIORATTI
São Paulo

​Tente assistir ao filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos", clássico nacional de 1976 assinado por Bruno Barreto, respeitando os direitos de autor. Quem quiser cumprir a tarefa vai ter dificuldade, com o risco de não conseguir completá-la de forma nenhuma.

Não bastou ser um filme premiado e reconhecido pela crítica, tampouco o terceiro colocado na lista de obras cinematográficas com maior público do país. Se antes era fácil encontrar o título em qualquer locadora de bairro, hoje "Dona Flor" ficou sem espaço nas plataformas de vídeo sob demanda --excluindo-se, claro, opções piratas.

"Diferentes plataformas VOD tentaram adquirir [o filme], mas ofereceram muito pouco, então preferimos não vender", diz Daniella Guimarães Rangel, da equipe de acervo da LC Barreto, que detém direitos sobre a obra.

Comprar uma cópia em DVD pode ser uma solução? O filme aparece como "indisponível" nas principais livrarias da cidade e em seus sites de venda online. No YouTube só há cópias piratas, e a produtora diz que está requerendo ao site sua retirada.

Uma forma de ver o filme é esperá-lo ser exibido pelo Canal Brasil. O mesmo vale para "O que É Isso Companheiro?", também de Barreto, e "Bye Bye Brasil", de Cacá Diegues. "O Passado" e "Meu Amigo Hindu", de Héctor Babenco, também não estão em nenhuma plataforma VOD.

Filmes brasileiros produzidos antes dos anos 2010 já encontram dificuldades técnicas e entraves contratuais para compor catálogos que surgiram no embalo da Netflix.

O diretor Kleber Mendonça Filho (de "Aquarius" e "O Som ao Redor"), conta que quis recentemente rever "Baixio das Bestas" (2006), filme de Claudio Assis, premiado em festivais brasileiros e internacionais. "Mas não encontrei em nenhum lugar."

Procurado pela reportagem, Assis diz que nem "Baixio" e nem "Amarelo Manga" (2002) conseguiram espaço em canais de vídeo sob demanda. "É muito difícil conseguir colocar o filme em algum canal", diz ele. "Tem que correr atrás o tempo todo."

Ele se refere ao esforço que os novos formatos exigem de produtores e distribuidores. Contratos de exibições, hoje, raramente passam de dois anos. Isso significa que, se um filme está disponível, no Now, da Net, por exemplo, nada garante que daqui um mês a obra permaneça lá.

Segundo João Worcman, diretor da Synapse, empresa especializada em adaptar filmes para canais de VOD, especificações técnicas tendem a dificultar a inclusão de filmes mais antigos.

"O arquivo a ser enviado para as plataformas deve estar no mesmo 'frame rate' do arquivo original. Quando o arquivo passa por processos de conversão, alterando as configurações originais, ele dificilmente será aceito pelas plataformas mais exigentes, como iTunes e Netflix".

Filmes mais novos, prossegue Worcman, tornam o processo de entrega mais simples e o custo de disponibilização pode ser mais baixo.

"Certamente há bons filmes que não estão disponíveis em plataformas VOD porque são antigos, e seus materiais precisariam passar por processos de preparação que têm custo muito elevado. Como geralmente filmes mais antigos ainda não produzem muitas vendas, há um processo natural de seleção e alguns deles acabam ficando de fora".

O comércio legal de títulos antigos "ainda não se justifica", diz. "Mas acredito que em alguns anos a exploração de nichos fará sentido comercialmente. Títulos hoje não disponíveis vão aparecer."

PONTO CEGO

Quando fala em "nicho", Worcman traz um conceito que tem sido debatido como possível propulsor da diversidade no modelo de VOD. Os nichos podem ser criados por canais que, por exemplo, só exibem um gênero, obras de um diretor, videoclipes.

Igor Kupstas, diretor da O2 Play que também compôs a equipe de criação do portal de locação de filmes SP Cine Play, concorda que a imaturidade do mercado de VOD produziu um ponto cego. Mas acha que a internet tem todas as ferramentas para que esse fenômeno se reverta logo.

Kupstar cita como ponto-chave para a expansão do acesso a filmes brasileiros (mas não só) as plataformas de cauda longa, que exigem especificações técnicas, mas permitem conteúdos de qualidades diversas e que produtores incluam seus filmes. "No iTunes, só não publicam pornografia", exemplifica.

Mesmo quando o filme está disponível em uma plataforma, pode ser que depois de um tempo seja encontrado em outra, e não mais naquela.

"Alguns filmes você não acha mesmo", diz a diretora Laís Bodanzky. "Como pesquisadora, me sinto à deriva. As locadoras eram estáticas, eu sabia o que ia encontrar lá."

O diretor Kleber Mendonça Filho conta que seu "O Som ao Redor" (2013) ficou na Netflix por um ano, em 2014 --e hoje é possível encontrar o filme no Now e no iTunes.

O tema foi debatido em janeiro no seminário Panorama do VOD no Brasil, realizado no MIS-SP pela Associação Paulista de Cineastas, a Brasil Audiovisual Independente e o Sindicato da Indústria Audiovisual do Estado de SP, com apoio da Folha.

"É preciso preservar nossa cinematografia, trazer ao público o cinema em português. É fundamental a questão da digitalização do cinema brasileiro, para que a gente possa acessá-lo", disse então o cineasta Rodrigo Siqueira.

 

ALÉM DA NETFLIX

Onde ver filmes nacionais na rede

iTunes O canal da Apple permite a publicação de conteúdos diversos; o formato permite a formação de um catálogo volumoso. Nele você encontra O Som ao Redor e Aquarius, de Kleber Mendonça Filho.

Canal Brasil Play Líder na formação de um acervo nacional, pode ser acessado por assinantes de TV paga, como Net ou Vivo. Também tem uma plataforma VOD, mas nem todos os filmes que passam na TV a cabo estão disponíveis. Nele você encontra Cidade de Deus, de Fernando Meirelles.

Looke Serviço de aluguel de filmes e streaming. Também funciona por assinatura (R$ 14,90), mas nem todos os filmes de seu catálogo ficam disponíveis para assinantes. Nele você vê Bingo, o Rei das Manhãs, de Daniel Rezende

SP Cine Play Lançado pela SP Cine, empresa com participação do município, o portal ainda tem um catálogo pequeno, de dez títulos. A locação por sete dias custa R$ 3,90. Você encontra lá O Menino e o Mundo (2013), de Alê Abreu

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