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Monólogo poderoso, 'Medea Mina Jeje' dá força histórica a Medeia

Tragédia grega se encontra com a escravidão brasileira em espetáculo dolorosamente poético

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São Paulo

MEDEA MINA JEJE

Os sons de um mar revolto, que iniciam e encerram "Medea Mina Jeje", contrastam com a aridez do espaço cênico, assinado pela também diretora Juliana Monteiro.

O piso cor de areia cercado por folhas secas, junto à iluminação de Wagner Antônio e o desenho de som de João Paulo Nascimento, situa e realça a interpretação do ator Kenan Bernardes.

Em um solo de força impressionante, Bernardes narra, canta, dança e representa, por meio do poema cênico delicado e poderoso escrito por Rudinei Borges, uma possível Medeia negra e escravizada.

Kenan Bernardes no monólogo "Medea Mina Jeje", escrito por Rudinei Borges e dirigido por Juliana Monteiro. Espetáculo faz um paralelo entre o mito de Medeia e a escravidão
Kenan Bernardes em 'Medea Mina Jeje' - Julieta Bachin/Divulgação

Tendo como base a leitura de Eurípedes do mito, a dramaturgia de Borges traz como central a analogia entre as identidades estrangeiras. Se no texto clássico Medeia é bárbara para os gregos, esta Medea, trazida de África para trabalhar na mineração em Ouro Preto no século 18, tem em si a problemática da construção da identidade diaspórica.

A mina de ouro Jeje, que dá nome ao espetáculo, segue aberta para visitação turística nos dias de hoje. Em seus túneis estreitos, escravos ainda criança trabalhavam. Para evitar que crescessem, muitos eram castrados.

Nesta versão, Medea não busca vingança no filicídio que cometerá. A escolha de apresentar Jasão como um capitão do mato é um dos muitos indícios da visão que a obra tem sobre tal ato: trata-se de um sacrifício que almeja a liberdade.

Seu filho, Age, depois de uma tentativa malsucedida de fuga, será mais um castrado e condenado a uma vida inteira de trabalhos forçados dentro da mina. Nunca se tornará um homem, nunca será livre --nunca viverá.

Na dramaturgia de Borges, a força mítica dessa mulher ganha força histórica na fricção com um tempo e um espaço definidos. Não há falha trágica, e sim uma tomada de consciência dentro de um sistema escravocrata cujo ciclo parecia eterno.

O assassinato de Age pelas mãos da própria mãe torna-se então um ato político revolucionário --não sem dor, tampouco sem amor. Nesse sentido, a potência cênica de "Medea Mina Jeje" se revela no desempenho de Bernardes.

Cabe apontar, ainda, a escolha por um intérprete homem. Mesmo que dentro de uma estrutura de muitas vozes, há de se considerar que a figura central da obra é uma mulher. Assim, quando o corpo masculino em cena busca materializar uma relação maternal, parece que a encenação opta por adicionar camadas outras de leitura.

Não se trata, pois, da história de uma heroína trágica (uma questão que se coloca até em relação à Medeia original), mas de como viver quando o que nos cerca é tragédia. Em palavras, sons e ações, o horror vivido por aquela mãe é escancarado. Transitando entre o lirismo e o épico, "Medea Mina Jeje" é pautado por escolhas dolorosamente poéticas.

O peso da fábula está nas vozes das personagens, nos cantos em idiomas africanos, em danças rituais e na significação dada às relações com objetos e com o figurino.

As imagens do texto parecem tomar conta de todo o espaço e de todas as ações do ator. Os diversos elementos da encenação operam em consonância para que a interpretação faça a poesia saltar aos olhos do espectador.

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