Obra de compositora Florence Price é resgatada

Americana foi primeira negra a ser tocada por uma grande orquestra nos Estados Unidos

Florence Price (1887-1953), que teve concertos recém-gravados pela primeira vez
Florence Price (1887-1953), que teve concertos recém-gravados pela primeira vez - NYT
micaela baranello
New York Times

Em novembro de 1943 a compositora Florence Price escreveu para Serge Koussevitzky, diretor musical da Orquestra Sinfônica de Boston, pedindo que ele considerasse a possibilidade de tocar suas composições.

"Infelizmente, o trabalho de uma compositora é preconcebido por muitos como superficial, leve, carente de profundidade, lógica e virilidade", escreveu. "Some-se a isso a questão da raça --tenho sangue negro em minhas veias--, e o senhor entenderá algumas das dificuldades que enfrento nessa posição."

Foi sua segunda carta para ele. Não há evidências de que tenha tido resposta.

Quando a Sinfônica de Chicago apresentou sua "Sinfonia em Mi Menor", em 1933, Price (1887-1953) tornou-se a primeira mulher negra a ter sua música tocada por uma grande orquestra americana.

Ela era uma figura destacada da intelligentsia afro-americana; trocava cartas com W. E. B. Dubois e musicou poemas de Langston Hughes e Paul Laurence Dunbar.

Mas, após sua morte, ela se diluiu rapidamente num cânone dominado por homens brancos, e boa parte de sua obra tinha sido dada como perdida até 2009, quando vários manuscritos foram encontrados numa residência nos arredores de Chicago que tinha sido sua casa de campo.

Partitura de um dos concertos recém-gravados de Price
Partitura de um dos concertos recém-gravados de Price - NYT

Entre as composições encontradas estão seus dois concertos para violino, cuja primeira gravação saiu neste mês pela Albany Records [US$ 16,99, cerca de R$ 56, em alba nyrecords.com ou no iTunes], com Er-Gene Kahng como solista e Ryan Cockerham regendo a Filarmônica de Janacek.

"Minha primeira impressão foi de uma música deslumbrante, acessível", diz Kahng. Ela vai tocar o Concerto para Violino Nº 2 ao vivo com a Orquestra Filarmônica de Arkansas no sábado (17), em Bentonville.

O concerto foi dedicado à violinista Minnie Cedargreen Jernberg, que o tocou, dez anos após a morte de Price, na inauguração de uma escola primária de Chicago que recebeu o nome da compositora. Mas a peça nunca foi, até agora, apresentada com orquestra.

RAÇA OCULTA

Nascida em Little Rock, Arkansas, filha de uma família de classe média --seu pai foi o primeiro dentista negro da cidade, e o governador teria sido seu paciente em segredo--, Price viajou à Inglaterra e à França com sua mãe quando tinha 5 anos, conforme escreveria mais tarde.

Destacou-se muito como estudante no Conservatório de Música da Nova Inglaterra, onde foi uma das poucas alunas particulares de composição do diretor da escola, o eminente George Whitefield Chadwick (1854-1931).

Mas sua mãe insistiu que ela devia ocultar sua raça. No recital de formatura de sua turma, Price ocupou a prestigiosa posição final, mas o programa do recital a descreve como sendo natural de "Pueblo, México".

Em 1893, o compositor tcheco Antonín Dvorák (1841-1904) disse que a música erudita americana deveria ser criada a partir de expressões musicais afro-americanas.

O musicólogo Douglas Shadle observou que, enquanto compositores brancos deram ouvidos a Dvorák --o que teria culminado com "Rhapsody in Blue", de George Gershwin--, muitos compositores afro-americanos em grande medida esquecidos também o fizeram e, em muitos casos, rejeitaram o que enxergaram como sendo apropriação branca.

Em entrevista, Shadle diz que Florence Price representou "o ponto culminante do fluxo intelectual afro-americano que seguiu os rastros de Dvorák". Ela se tornou conhecida por arranjos de "spirituals"; a grande contralto Marian Anderson encerrou seu concerto histórico de 1939 no Lincoln Memorial com o arranjo de Price para "My  Soul's  Been  Anchored  in de Lord".

Para Marquese Carter, cantor e doutorando na Universidade de Indiana especializado na obra de Price, a compositora "utiliza o material organizador dos spirituals".

"Podemos não ouvir referências diretas, mas a ouvimos brincando com a escala pentatônica, com a chamada e resposta, princípios organizadores que estudiosos da música afro-americana, como Amiri Baraka, descrevem como sendo indicativos do discurso musical negro."

"Florence Price é uma representação na música do que significa ser uma artista negra vivendo em um cânone branco e procurando trabalhar no campo erudito", acrescenta Carter. "Como fazer para, nesse contexto, criar um som que seja o som de nossa cultura, de nossa experiência, de nossas vidas?"

Os concertos para violino oferecem uma resposta. O primeiro, de 1939, em alguns momentos soa como um regresso, ecoando o famoso concerto de Tchaikóvski para violino e demonstrando o domínio de Price da harmonia e orquestração do século 19.

Mas o segundo, composto em um único movimento em 1952 e por muito tempo dado como perdido, embora ainda seja altamente lírico, é mais concentrado e aventuroso em termos de harmonia.

Em uma carta a um regente nos anos 1940, Price descreve "centenas de manuscritos inéditos e nem sequer enviados a editoras musicais". Ela compôs até o fim da vida. Após a morte de Price, sem sua tenacidade e sua defesa da própria música, sua obra foi preservada de forma incompleta --tanto que vem sendo reconstruída peça a peça.

Mas Price também foi meticulosa, e os manuscritos descobertos nove anos atrás --agora na biblioteca da Universidade de Arkansas, com muitos outros papéis seus estão completos, em sua maioria, e fáceis de tocar.

Tradução CLARA ALLAIN

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