Descrição de chapéu
Artes Cênicas teatro

Britânica constrói pequeno monumento à memória das diásporas

Selina Thompson refez rota de comércio escravo para criar espetáculo 'sal.'

Amilton de Azevedo
São Paulo

sal.

  • Quando sex. (9) e sáb. (10), às 20h —a sessão de sábado será seguida de conversa com Ana Maria Gonçalves
  • Onde Itaú Cultural - auditório, av. Paulista, 149, tel. (11) 2168-1777/ 2168-1777
  • Preço grátis; ingressos serão distribuídos uma hora antes do espetáculo, com limite de uma entrada por pessoa (e duas horas para público preferencial, que tem direito a um acompanhante)
  • Classificação 14 anos

Selina Thompson sobe no palco e se posiciona atrás de uma mesa. Ela observa a movimentação do público, com ternura no olhar. Quando o espetáculo "sal." começa, a performer se apresenta. É uma artista, mulher, negra, que está no palco para nos contar uma história da diáspora.

A britânica não mede palavras e afirma: a Europa está banhada em sangue e sofrimento. A denúncia da permanência do racismo e de relações coloniais é central na obra. No entanto, ao partir de sua própria história, relações afetivas e memórias ganham força. Entre o texto dito e a cena, imagens são constantemente construídas —e destruídas por Thompson, em busca de sua identidade.

Encarnado pela performer —que transita por momentos de doçura, humor e crueza— o texto parece ter a capacidade de historicizar uma trajetória individual. Trata-se de uma dramaturgia com forte potência oral, muitas vezes na forma de poesia falada (spoken word). “sal.” narra a viagem da artista de navio cargueiro, saindo da Europa em direção à Gana e, posteriormente, para a Jamaica e Montserrat.

A rota escolhida, historicamente utilizada no comércio de escravos, também diz respeito às suas origens familiares. A avó, originária do pequeno território britânico no Caribe, faleceu logo no início de sua viagem-performance. Parece ser esse um grande disparador das reflexões de Thompson acerca de sua ancestralidade e pertencimento.

Do período embarcada, narra episódios cruéis de racismo vivenciados por ela e sua colega. De Gana, o possível encontro com uma origem; com seu povo e a dor de sua história. A Jamaica, terra de seus pais, aparece mais como um sonho do que como um lar. No meio de tudo, as reflexões sobre as consequências de sua criação no Reino Unido.

A encenação vai além da força carregada na narrativa em si. Um enorme bloco de sal será pouco a pouco esfarelado pelo uso de uma marreta. A cisão desse uno em fragmentos se dá no que aparenta ser o primeiro contato de Thompson com um pensamento racista escancarado. Não se trata meramente de uma reação à agressão —a marretada parece atingir mais forte na subjetividade da performer do que no sal.

Na sequência, compartilhando suas experiências no navio, blocos menores são enfileirados. Uma ponta da cadeia acabará reduzida a pó. A outra, um maciço que, ainda que golpeado, pouco se desestrutura. É um momento onde o discurso político apresenta-se de forma direta e até didática.

Ao fim de sua longa e árdua viagem, parece que a artista é confrontada com a problemática do não lugar da identidade diaspórica. Seu não pertencimento, então, se ressignifica. Na busca não só por si, mas por formas de honrar sua ancestralidade, reencontra-se com a memória de sua avó.

O sal, com sua potência cicatrizante, deixa de representar a violência e o esfacelamento gerado pelas colonizações. Ao materializar a metáfora e transformá-la em amuleto, Thompson nos lembra que é necessário seguir vivendo. E, ao mesmo tempo, constrói um pequeno monumento à memória das diásporas.

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