Cecily Brown mostra em São Paulo 'sentimento apocalíptico'

Artista britânica ganha no Tomie Ohtake sua primeira individual no Brasil

Silas Martí
Nova York

​Numa manhã fria de inverno, em Nova York, diante de enormes telas inacabadas em seu ateliê, Cecily Brown tentava explicar como pintava os seus "clarões escorregadios".

 
 

Um dos quadros mostrava um homem relaxando na praia. Era a visão idílica de um verão perfeito não fosse a cena violenta, de um policial apartando uma briga, que ela ainda estudava como encaixar na composição, um esboço dela já pronto ali no chão.

Os tais clarões na obra dessa artista britânica radicada na maior metrópole americana são os lampejos de nitidez que saltam para fora de camadas de tinta formando vórtices tortuosos sobre a tela —nesse caso, o viajante incauto pego no meio do arrastão.

"Isso tem a ver com o fluxo avassalador de energia daqui, tem a ver com Nova York", ela diz. "Sempre fui atraída pelas cidades movimentadas, por esses bombardeios de imagens, de gente."

Mais do que a atração confessa pelo caos, Brown tem uma queda por narrativas a ponto de virar do avesso, instantes de beleza em colapso.

"Há sempre uma ansiedade por trás, uma sensação de perigo", afirma a artista. "É a ideia de ter coisas horríveis acontecendo em paralelo à beleza do mundo. Posso pintar o mais belo dos céus azuis e atrocidades debaixo dele."

Momentos atrozes também rondam os paraísos ultrajados que ela retratou em outra série recente.

Em duas exposições agora em São Paulo —individual no Instituto Tomie Ohtake, e em mostra que tem também Tunga e Flávio de Carvalho, no centro cultural Auroras—, Brown mostra um grupo de quadros em que tentou plasmar a ideia de lugar perfeito.

São florestas luxuriantes, transbordando de vida, que escondem feras e monstros, uma fusão do paraíso ao inferno. Nesse purgatório plástico, no entanto, perigos são invisíveis e às vezes se manifestam só em rastros de cores.

"Não faço pinturas como relatos factuais, mas há um sentimento apocalíptico nelas", diz Brown. "Vejo essas obras como as últimas otimistas que fiz. É difícil ter esperança numa época violenta."

Brown, no caso, comenta a sensação de montanha-russa que é viver na América convulsionada de Donald Trump.

Mesmo que suas telas fujam da superfície estrondosa do noticiário, ecos das bravatas e tuítes raivosos que sobrecarregam a atmosfera aqui orientam as suas pinceladas erráticas, formando um reflexo taquicárdico da realidade.

"Não faço abstração", diz Brown. "Essas coisas fragmentadas, fraturadas, estilhaçadas, quebradas espelham a realidade. Tento encontrar aquele ponto de equilíbrio entre a figuração e outra coisa, mas é essa atrofia, ou a desintegração da figura, que entendo como realismo."

FORA DE MODA

Era isso que não entendiam em Londres. Quando começou a pintar, seu país vivia um romance tórrido com os chamados Jovens Artistas Britânicos, a geração de Damien Hirst, Tracy Emin, Sarah Lucas e outros que se firmariam como astros da arte.

Nesse contexto, nada podia ser mais fora de moda do que pintar, ainda mais quando o que ela fazia lembrava os expressionistas abstratos americanos, algo passadista.

Em Nova York, meca do movimento histórico, ela acabou caindo nas graças de críticos que viram seu trabalho como resposta feminista ao estilo abrutalhado da escola.

"É estranho pensar que a personalidade dos expressionistas era essa coisa machão", diz Brown. "Sempre vi as obras deles como uma coisa feminina, muito gestual."

Esses movimentos delicados sobreviveram nas telas da artista. As figuras fazendo sexo dos primeiros quadros que pintou acabaram dando lugar a pinceladas bruscas, como se aquela carga erótica virasse um impulso abstrato.


CECILY BROWN

QUANDO no Tomie Ohtake de ter. a dom., 11h às 20h; até 27/5; no Auroras, sáb. e dom., 11h às 18h; de 24/3 a 12/5

ONDE Tomie Ohtake, av. Brig. Faria Lima, 201, tel. (11) 2245-1900; Auroras, av. São Valério, 426

QUANTO grátis

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.