Denúncias guiam feiras de primavera em Nova York

Obras da semana mais frenética do mundo da arte nova-iorquino espelham noticiário

Homem observa o trabalho ‘Pink Forest’, do artista Patrick Jacobs, na feira Armory Show
Homem observa o trabalho ‘Pink Forest’, do artista Patrick Jacobs, na feira Armory Show - Timothy A. Clary/AFP
Silas Martí
Nova York

No 21º andar de uma das torres em volta da Times Square, artistas e colecionadores faziam fila para falar o que quisessem no microfone de uma réplica da sala de imprensa da Casa Branca. Diante do pódio, cadeiras vazias traziam nomes de jornalistas mortos, ameaçados ou demitidos há pouquíssimo tempo.

Essa obra da artista Macon Reed foi o abre-alas do Spring Break Art Show, uma das dezenas de feiras que fizeram ferver o mercado da arte em Nova York nos últimos dias.

No mesmo evento, máquinas criadas por Fernando Orellana agitavam cartazes sobre os “dreamers”, os imigrantes sem documentos trazidos ainda crianças para os Estados Unidos que agora lutam para evitar a deportação.

Quase todas as obras à venda na semana mais frenética do mundo da arte nova-iorquino, aliás, pareciam espelhar manchetes do noticiário.

E o grande vilão do momento não deixou de ser o presidente Donald Trump. Quando o republicano tomou as rédeas de Washington, artistas logo fizeram dele o maior alvo de sátiras ácidas, num misto de ativismo e desencanto sublinhando talvez a mais perplexa melancolia.

Mas, neste segundo ano de um dos governos mais erráticos da história americana, o efeito Trump na arte passou a lembrar o que aconteceu em Hollywood —os talk shows da noite e a comédia stand-up lucraram como nunca com ataques ao presidente e se tornaram um reflexo urgente da psique abalada da nação.

Na Independent, uma feira em TriBeCa, o rosto de Trump estava em todo lugar. 

A artista Cynthia Daignault pintou a capa do Chicago Tribune noticiando a vitória dele na corrida à Casa Branca, enquanto Guy Richards Smit imaginou como sua renúncia em meio a escândalos apareceria na primeira página do diário The New York Times.

O acelerado ciclo de notícias na era do político que tornou corrente a expressão “fake news” parece também ter feito surgir um novo —e cobiçado— gênero de obras de arte de temperatura jornalística, com um pé na denúncia e outro no sensacionalismo.

Na tentativa de fixar os ultrajes de um momento em que um novo escândalo logo atropela o anterior, a artista Marilyn Minter gravou em letras douradas numa placa de mármore a famosa fala de Trump sobre como ele “agarra as mulheres pela xoxota”.

Em tempos de Time’s Up e #MeToo, movimentos que vêm denunciando a cultura de assédio sexual que vigora  numa série de indústrias, da política ao entretenimento, predadores sexuais também entraram na mira de artistas.

Dois deles, o comediante Louis C.K. e o produtor de cinema Harvey Weinstein, estão em retratos pouco atraentes feitos por Christine Wang.

Na Armory Show, a maior e mais poderosa feira da temporada, que acabou demitindo seu diretor depois de uma onda de denúncias de assédio sexual, o assunto também deu as caras em trabalhos como os de Tabita Rezaire.

Rezaire concebeu uma cadeira ginecológica rosa-choque e autorretratos em que encarna uma stripper. O fato de ela ser negra também conduz a discussão para as arenas do racismo e da xenofobia, em alta na era Trump.

Enquanto a artista Kameelah Janan Rasheed criou uma instalação em que diz estar pondo sua “raiva negra à venda”, o grafiteiro francês JR montou na entrada da feira que ocupa os velhos píeres do rio Hudson enormes retratos de imigrantes chegando a Nova York no século passado. No lugar de seus rostos, contudo, colocou os de refugiados sírios de agora.
 

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