Documentário recupera histórias da Guerrilha do Araguaia

'Soldados do Araguaia' tem como foco depoimentos de militares de baixa patente

Naief Haddad
São Paulo

“Tenho pesadelos horríveis todos os dias nesses anos todos”, diz o ex-cabo Elias, um homem na casa dos 65 anos. O depoimento dele está no documentário “Soldados do Araguaia”, que acaba de chegar aos cinemas.


Ao mencionar “nesses anos todos”, Elias se refere a um período de mais de quatro décadas. A origem das noites mal dormidas está na participação dele no combate aos guerrilheiros do Araguaia na primeira metade da década de 1970.

Cena do filme 'Soldados do Araguaia'
Cena do documentário 'Soldados do Araguaia' - Divulgação


Cerca de 4.000 homens das Forças Armadas, oriundos de várias cidades do país, integraram as operações contra os militantes do PC do B (Partido Comunista do Brasil) nas matas dessa região, localizada na divisa dos estados do Pará e de Tocantins.


O filme do diretor carioca Belisário Franca, contudo, se volta para um grupo bem específico, os militares de baixa patente que moravam nessa área, como Elias.


Embora totalmente inexperientes em ações de enfrentamento, cerca de 60 homens foram recrutados devido ao conhecimento que tinham do Araguaia. Oito deles aceitaram gravar depoimentos para o documentário.

A jornada desses soldados paraenses começou pelo desconhecimento —não sabiam por que os líderes militares pretendiam dar fim aos guerrilheiros, tampouco tinham ideia de como seria o dia a dia no meio do mato.


O pior, no entanto, estava por vir. Eles passaram a ser ofendidos e agredidos com frequência pelos militares mais graduados. Os soldados de baixa patente precisavam ser torturados para que aprendessem a torturar, para que se acostumassem a não sentir pena, diziam os oficiais.


“Esses homens foram vítimas não convencionais, estavam do lado errado da história. Mas também sofreram, às vezes até mais do que os guerrilheiros”, afirma Belisário.


Encerrada a missão, com a guerrilha dizimada, os soldados do Araguaia foram pressionados a manter em segredo tudo o que tinham presenciado. Na maior parte dos casos, eles só revelaram essas experiências traumáticas poucos anos atrás, com o apoio de psicólogos do projeto Clínica do Testemunho. 

COMISSÃO DA VERDADE

De acordo com o diretor, o sigilo que prevaleceu por décadas mostra a “eficiência da política de silenciamento da ditadura militar”.

No filme, além dos depoimentos, há fotos marcantes do período, obtidas em acervos pessoais e também no Arquivo Nacional.

Existem ainda imagens reunidas pela Comissão Nacional da Verdade. Entre 2011 e 2014, o grupo montado pelo governo federal investigou violações de direitos humanos nas últimas décadas, especialmente durante o regime comandado pelos generais.

“O trabalho feito pela comissão foi muito pouco apropriado pela sociedade. Precisamos olhar para esses fatos”, afirma o diretor. “Como vamos construir a justiça se não temos memória da injustiça?”

“Soldados do Araguaia” é o segundo filme da série batizada por Belisário como Trilogia do Silenciamento.
O primeiro foi “Menino 23” (2016), sobre uma família de simpatizantes do nazismo que escravizava meninos negros na década de 1930 no interior de São Paulo. 

O terceiro filme, em fase de montagem, tem as prisões do Pará como tema e deve ser lançado no ano que vem.

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