Em "No Quarto 19", da escritora britânica Doris Lessing, Susan Rawlings, o marido, as crianças e a casinha branca com jardim encarnam a utopia pequeno-burguesa. O sonho suburbano, contudo, começa a apresentar fissuras assim que os filhos menores do casal passam a frequentar a escola.
Na casa vazia, Susan se vê esmagada pelas funções domésticas, conjugais e maternas. Aos poucos, entre arbustos do jardim, agora ameaçador, sua identidade parece escapar-lhe entre os dedos. Seu refúgio é o quarto de hotel barato que dá nome ao conto.
Se a obra, publicada em 1963, captura as transformações culturais e reivindicações do movimento feminista que sacudiram a Londres daquela década, a adaptação para o palco, "Quarto 19", busca evidenciar a universalidade e a atemporalidade da narrativa. Nesta versão, o drama transcorre numa cidade desconhecida em um ano qualquer e, não sem ironia, a personagem, cuja identidade desmorona, não tem nome e sobrenome —é chamada apenas de "ela".
A força motriz do monólogo é a protagonista Amanda Lyra, que traduziu o conto e o adaptou ao palco. A atriz, indicada ao Prêmio Shell pelo trabalho, contra uma cenografia propositalmente vazia, capta a atenção do público e com ele estabelece uma rara cumplicidade. A intimidade é tamanha que a plateia se permite ser guiada numa jornada, por vezes dolorosa, de uma personagem em busca de si própria.
Essa conexão entre intérprete e espectador é, em parte, facilitada pela direção de Leonardo Moreira, que, de modo semelhante aos monólogos de "Ficção" (2012), da Cia. Hiato, imprime um tom confessional à atuação.
A naturalidade resultante faz atriz e personagem, muitas vezes, confundirem-se. Mas, ao contrário daquele conjunto de solos, o discurso de "Quarto 19" é predominantemente indireto —"ela" por vezes fala de si na terceira pessoa, como que para refletir o seu eu fragmentado.
Se o ator e a plateia dependem um do outro, o mesmo pode ser dito sobre a literatura e o teatro. O espetáculo atualiza essa indelével simbiose ao acrescentar à obra de Lessing uma nova camada: meio século após a publicação do conto, a agora anônima Susan Rawlings, encarnada por Lyra, adentra a cena para, finalmente, descobrir a própria identidade como resultado de um árduo e incessante trabalho de ficcionalização de si mesma.
O talento da protagonista confere um vigor extraordinário ao monólogo, que vai além de um retrato intimista da condição feminina: trata da difícil tarefa de lutar, ininterruptamente, pela sobrevivência da própria identidade numa sociedade que regula os indivíduos para serem sempre dóceis e dispostos a consumir ideais pré-fabricados de felicidade.
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