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Imortal, João Almino cria geografia que entranha nos personagens

'Entre Facas, Algodão' é 1º romance do autor já membro da Academia Brasileira de Letras

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Beatriz Resende

entre facas, algodão

  • Preço R$ 39,90 (192 págs.)
  • Autoria João Almino
  • Editora Record

Sobre João Almino, diz-se sempre que se tornou o romancista de Brasília. Mais do que isso: o escritor colocou no universo afetivo da literatura brasileira a cidade sem calçadas do delírio modernista.

O escritor e diplomata João Almino - Divulgação

Em "Cidade Livre", de 2010, voltou aos inícios da cidade, ao momento da construção, do monumento que se ergueu sobre restos da primeira, desordenada, pecadora, onde o crime ainda era o crime comum, praticado por homens comuns. Aquela, diz, foi a primeira cidade descartável, "construída para ser destruída".

Em "Entre Facas, Algodão", primeiro romance de João Almino já membro da Academia Brasileira de Letras, a vida em Brasília e o casamento do narrador, advogado nordestino de 70 anos que venceu na capital, já se esgotou. Cansado do presente, o passado reaparece com interesse.

O diário, que dá forma ao romance, registra secamente as decisões, que são também partilhadas pelo Facebook.

Dois feriados seguidos em Brasília —"Vou aqui de feriado em feriado, nem sei por quê. Hoje imagino que haja discursos e protestos"— evocam a rede branca sem ninguém balançando no alpendre movida pelo Nordeste, vento que chegava forte na casa do passado.

Nessa idade, a cabeça por vezes falha, as paisagens de secura e árvores calcinadas se misturam, mas "os sonhos têm memória" e surge a lembrança de um amor de juventude, da casa da família.

Algumas trocas de WhatsApp, e Tabatinga é deixada para trás em voo para Fortaleza e de lá, via Mossoró, para a fazendola comprada, lugar onde passara a infância, na intenção de plantar algodão.

Dentre as várias razões para a mudança está uma necessidade de vingança. Alguma tragédia a envolver pai, mãe e madrinha.

O que torna a narrativa especial e confirma uma dicção única é a criação do espaço por onde evolui a narrativa, os lugares por onde se movem os personagens, a geografia que entranha nas relações.

Só que desta vez é a voz do sertanejo que anota belezas repentinas, a feiura das localidades abandonadas, o rio que não dá passagem, o meio do mato onde não se pode conseguir suportar a solidão, nem mesmo depois do wi-fi.

Na chegada, o espaço é mesmo do passado e do presente: a lembrança do açude de Orós arrombado, a visão do cemitério ainda pobre, o rio que impede o caminho, os caminhos sinuosos e esburacados. Na cidade, as misérias de sempre estão só mais espalhadas.

Nesse Brasil de diferentes temporalidades que se juntam num presente impregnado ainda de perversas heranças não reparadas, os crimes mudaram apenas de armas.

As facas, que faziam jorrar tanto sangue, foram substituídas por outros recursos que preferem sangrar os cofres públicos. Os criminosos, os mandantes, o romance nos mostra, continuam os mesmos.

O homem velho deixa o Nordeste: "meu espírito secou, como a paisagem do sertão no auge do verão". Retorna a Brasília. Talvez o acaso traga de volta uma emoção vivida. Mas está difícil.

BEATRIZ RESENDE é crítica, professora da UFRJ e pesquisadora do CNPQ e da FAPERJ
 

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