Descrição de chapéu
Artes Cênicas teatro

 'O Gosto da Própria Carne' distorce a crueza da violência

Roberto Lage se reencontra com a premiada obra de Albert Innaurato depois de montá-la em 1985

Amilton de Azevedo
São Paulo

O GOSTO DA PRÓPRIA CARNE

  • Quando sex. e sáb., às 21h, dom., às 19h; até 29/4
  • Onde Ágora Teatro, r. Rui Barbosa, 672, tel. (11) 3284-0290
  • Preço R$ 50; 18 anos

Roberto Lage se reencontra com "O Gosto da Própria Carne", premiada obra do americano Albert Innaurato, três décadas depois de montá-la em 1985.

Benno, o personagem central, interpretado por Roberson Lima, é um jovem obeso que sofre com a violência, dentro e fora de casa.

Cena do espetáculo 'O Gosto da Própria Carne' - Lenise Pinheiro/Folhapress

Desumanizado, acaba tomado por instintos primitivos: come desenfreadamente, além de, a partir disso, desenvolver uma relação ambígua com a sexualidade.

O texto apresenta figuras disformes ao redor do protagonista. Escolhas cênicas —como os dois planos propostos na cenografia de Sylvia Moreira e a quase imobilidade de Lima— sugerem não só uma temporalidade vinculada às memórias de Benno, mas também que os outros podem se tratar de projeções.

Tal possibilidade justificaria a diferença na interpretação dos atores e atrizes. Lima é o único intérprete que trabalha com nuances —algo de certo modo facilitado pelo texto, visto que se dirige à plateia e conduz a narrativa.

Há uma intenção nítida de gerar náuseas no público: a relação com a comida é levada concretamente à cena. Benno come sem parar e, às vezes, baba e cospe.

Na direção de Lage, Lima se destaca pelo engajamento tanto nas ações quanto na articulação de textos que vão do mais cotidiano até metáforas elaboradas.

A escolha de manter Benno sempre no plano baixo, do lixo, é um bom achado da encenação —ainda que por vezes seja difícil acompanhar ações simultâneas.

Com a distância, suas reações, inadequadas e gatilhos para a frequente culpabilização do jovem, se destacam.

No entanto a proposta do diretor de levar ao palco a crueza não surte efeito no que tange o resto do elenco.

A ampliação, expressa em interpretações estereotipadas, acaba não apenas sublinhando o texto mas também distorcendo a representação.

Sobram a violência e o desagradável —o que, vale ressaltar, se encaixa na proposta da encenação.

Porém cabe refletir a respeito de onde se quer chegar em termos de eficácia.

"O Gosto da Própria Carne" parece ficar no meio do caminho entre aproximação e distanciamento --o primeiro, visaria a identificação da plateia com o real; o segundo, a reflexão crítica.

Ao mesmo tempo que o tom único dado aos algozes de Benno pode tirar deles a verossimilhança, o discurso de sua jovem colega soa perigoso. A personagem, de 13 anos, sofre abusos do avô do protagonista, mas parece se divertir e tirar proveito disso.

Nada distante da lógica cruel proposta pelo texto. A garota, inclusive, resolve a própria situação, mas não há redenções no espetáculo.

Ainda que a obra clame contra a censura e padrões moralistas, é fundamental refletir acerca da lida com certos comportamentos levados à cena. Não se trata de evitar temas tabus, mas enfrentá-los de maneira responsável.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.