A 215 quilômetros da capital síria, Damasco, Palmira tem um passado de proporções míticas: espécie de encruzilhada entre o Ocidente e o Oriente, caldeirão multiétnico e multicultural, cuja fama data da Antiguidade. Em 2015, as ruínas da cidade foram tomadas pelo grupo terrorista Estado Islâmico, que reduziu a entulho seus monumentos multisseculares.
Logo, pode-se imaginar que "Palmira", montagem de Bertrand Lesca e Nasi Voutsas, se debruce sobre os diversos e complexos aspectos do conflito armado sírio, responsável por ceifar a vida de quase meio milhão de pessoas e deflagrar uma crise humanitária de dimensões globais.
Mas o nome da peça é uma pista falsa: a manchete do noticiário internacional serve à dupla de atores-diretores apenas como alegoria em uma comédia leve, com acenos ao clown e ao humor físico.
Tais recursos, normalmente associados a figurinos e maquiagens caricatos, aqui se contrapõem à total ausência de cenografia ou adereços, o que confere à montagem um caráter experimental, realçado pela dramaturgia minimalista de Louise Stephens.
Não há personagens —a dupla franco-britânica interpreta a si mesma— e as cenas são apenas esboços de programas performáticos e esquetes com dispositivos dramáticos: um skate, um martelo, um prato que se espatifa no chão.
Esses elementos e linguagens, aparentemente díspares, harmonizam-se como conjunto, sobretudo quando usados para dramatizar a relação entre os artistas e seu processo criativo, ambos conflituosos. Uma das discussões, inclusive, é vista pelo público pela tela de um computador, numa possível alusão às execuções realizadas pelo Estado Islâmico, transmitidas do anfiteatro de Palmira via internet para todo o mundo.
IRRACIONAL
A pantomima cômica dos performers guarda consigo uma certa irracionalidade agressiva. Uma latente e crescente tensão impregna o palco e a plateia, a todo o tempo interpelada pelos atores. Mas a comunicação entre intérpretes e público não se estabelece por completo. A falha é proposital, pois, entre outras camadas de significação, "Palmira" é uma meditação sobre o fracasso do diálogo como elemento fundante da civilização.
Conjunto de soluções poéticas usadas para dar corpo a abstrações, o espetáculo é um veículo acessível para um discurso denso. Contudo, as ideias que movem a encenação acabam por ser mais instigantes que o resultado cênico propriamente dito.
A montagem busca precisar o momento em que o verniz civilizatório cede sob a pressão da barbárie, cuja força é capaz de detonar um conflito armado. Os encenadores, no entanto, preferem oferecer provocações a respostas. Como se aceitassem a própria incapacidade de abranger a complexidade de uma guerra civil orquestrada por interesses vários.
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