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Após hiato de 18 meses, série 'Atlanta' retoma com Trump na presidência 

Série combina as indignidades de ser negro e pobre às indignidades de batalhar pela riqueza.

Joe Coscarelli
Do “New York Times” | The New York Times

A temporada de estreia de “Atlanta”, série criada pelo polímata Donald Glover para o canal FX, provavelmente será recordada por suas brincadeiras ambiciosas e inexplicáveis: um atleta em um carro invisível, uma criança travessa usando pintura branca no rosto, um homem negro fazendo o papel de Justin Bieber.


Mas a comédia, recebida com muitos elogios pela crítica em 2016 e premiada com dois Emmy e dois Globos de Ouro, não tinha nada de pastelão. A série usa seu tema associado à música —um sujeito que abandonou os estudos na Universidade de Princeton tenta administrar a carreira ascendente no rap de seu primo traficante de drogas - para tratar de ideias distintamente americanas sobre ambição e identidade.

“Atlanta” mistura surrealismo e banalidade deliberada, e combina as indignidades de ser negro e pobre às indignidades de batalhar pela riqueza.


Passados quase 18 meses, “Atlanta” retorna a um mundo diferente. Donald Trump é presidente. O trio de rap Migos, mascote da primeira temporada, chegou ao estrelato pop. E os membros do elenco da série já não são desconhecidos, e conquistaram espaço em produções como “Han Solo: Uma História Star Wars”, “Rei Leão”, “Deadpool 2”, “Sorry to Bother You” - um dos filmes mais elogiados no festival Sundance -, e em “Lobby Hero”, peça de de Kenneth Donergan.


Liderados por Glover, que em “Atlanta” interpreta o aspirante a empresário musical Earn (e em breve será Lando Calrissian e Simba), os novos episódios mantêm a narrativa natural que caracteriza a série. E os demais personagens, como o rapper Alfred (ou Paper Boi, interpretado por Brian Tyree Henry), o amigo chapado e filosófico Darius (Lakeith Stranfield) e a certinha Van (Zazie Beetz), ganham mais espaço.

Cena de 'Atlanta', série da FX
Cena de 'Atlanta', série da FX - Divulgação

A série agora se chama “Atlanta Robbin’ Season”, uma alusão ao período anterior às festas, em que “todo mundo precisa comer” (“ou ser comido”), e ganhou tom mais sombrio, ainda que mantenha sua fundação idiossincrática, e que não tenha se tornado previsível demais em sua imprevisibilidade.


A série aproveita o conhecimento local dos roteiristas —todos são negros e nasceram em Atlanta, e a nova temporada se move com facilidade entre um lado Tarantino (com Katt Williams e seu crocodilo amestrado roubando a cena) e a sátira escancarada (uma visita a uma empresa de tecnologia com jeito de Spotify). A discreta intensidade e uma trilha sonora muito realista completam o pacote.

Outro traço da primeira temporada que permaneceu é a palheta visual distinta, concebida por Hiro Murai, antigo diretor de vídeos musicais, que aviva o panorama deteriorado da cidade com toques de cor e tomadas aéreas.


Antes da estreia da nova temporada, em Los Angeles no final de fevereiro, o elenco e Stephen, irmão de Glover e roteirista chefe da série, discutiram a dificuldade de ficar à altura de uma temporada estreia cultuada, a presença soturna de Trump, e como ficar famoso muda as coisas, nas telas e fora delas. 

Cena de 'Atlanta', série da FX
Cena de 'Atlanta', série da FX - Divulgação

 


The New York Times — Vocês todos ficaram bem ocupados, depois da primeira temporada. Quando começaram a conceituar como seria a segunda?
Stephen Glover: Não muito depois que a primeira temporada começou a ser transmitida, apareceram algumas ideias sobre o que queríamos fazer. Mas algumas delas eram ideias mais antigas que decidimos não usar quando decidimos sobre o conceito da segunda temporada. 
Donald Glover: A série sempre parece mudar muito enquanto acontece. Hiro sempre fala de que queríamos que a série fosse punk, e por isso ela precisa ser reativa. O punk não envelhece bem, porque é reativo —é pura emoção. Muitas coisas foram jogadas fora porque pareciam muito adultas, muito lineares. Sabíamos que a expectativa das pessoas seria de que falássemos sobre Trump.
 
Vocês tiveram essa conversa? O final da primeira temporada foi no começo de novembro de 2016, logo antes da eleição.
Donald Glover:
Acho que tudo começou com a pergunta: “Mas os pobres se incomodam com isso? Os pobres são afetados por isso?” Não é como se as coisas estivessem ótimas para os pobres no governo Obama e agora estejam muito piores. Se você é pobre, já está no fundo do poço.
Stephen Glover: Há algo de engraçado na ideia de que, quando você é pobre, não importa quem seja o presidente. Conversamos sobre uma cena que mostraria as pessoas super felizes na noite da vitória de Obama, e sobre mostrá-las depois disso e deixar claro que tudo continua igual. Nada muda, ponto.
 
Como “Robbin’ Season” [temporada de roubo] se tornou o tema principal?
Stephen Glover:
O conceito de “Robbin’ Season” parecia cool porque fizemos muita coisa sobre o verão na primeira temporada - o calor era visível. Comecei a me lembrar de como era viver lá no inverno; a cidade fica com um clima muito sombrio. As pessoas acham que Atlanta é uma cidade festiva, mas existe esse lado mais duro, com muito crime, muitas dificuldades. Acho que isso cai bem com o clima de Trump, também. As pessoas estavam se sentindo um pouco menos otimistas naquele momento. “Robbin’ Season” encapsulava tudo isso.
Donald Glover: Queríamos mostrar o desenvolvimento do caráter dos personagens, pessoas acuadas. Falamos muito sobre como as pessoas, especialmente as brancas, reagiriam. “Cara, eu adoraria sair com Paper Boi. Ele parece ser um cara legal”. Na vida real, você não sairia com Paper Boi, e queríamos mostrar os motivos disso.
Henry: As pessoas pensam que ele é acessível. Mas é melhor não ficar se sentindo muito confortável com ele.
 
Quando a história é retomada, a carreira de Paper Boi avançou, mas esse avanço não aparece na tela, e só vemos a parte melancólica de sua ascensão: a ausência de fontes confiáveis de renda, encontros desagradáveis com os fãs. Como pessoas que já viveram no mundo da música, vocês acharam importante esvaziar a fantasia da ascensão fácil?
Donald Glover:
Isso não é importante para mim. Odeio programas com lições de moral, especialmente programas negros com lições de moral.
Henry: Sempre querendo martelar alguma coisa em nossa cabeça.
Donald Glover: Tipo, “é isso que a palavra nigger quer dizer, na realidade. Há muitos tipos de pessoas negras, com muitas ideias diferentes”. É sempre preciso que haja uma lição para alguém. Se estou numa festa com minha mãe, minha tia, Stephen, meu filho e todo mundo que está aqui, e se minha mãe disser “não use a palavra nigger”, não é como se tivéssemos levado uma lição de moral e aprendêssemos a não dizer mais a palavra. Eu talvez só evite dizê-la na frente da minha mãe. Ou, se estiver balão, a reação talvez seja “vou dizer nigga quando quiser, estou na minha casa!” Todos temos opiniões diferentes. Nunca queremos que alguma coisa seja “importante”.
 
De 2016 para cá, o rap de Atlanta voltou a crescer na cultura popular. A participação dos Migos talvez fosse diferente agora do que foi na primeira temporada. Vocês acham que a série terá recepção diferente agora porque as pessoas acham que conhecem melhor a cena [de Atlanta]?
Stanfield:
Não ligo para as expectativas. Atlanta está sempre mudando, se movendo. Se expectativas são um balão, “Atlanta” é uma faca.
Beetz: Profundo. (Risos)
 


Tradução de PAULO MIGLIACCI

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