Czeslawa Kwoka tinha 14 anos quando foi enviada de Zamosc, no sul da Polônia, para o campo de concentração de Auschwitz. Com os cabelos cortados rente à cabeça, foi fotografada sob seu novo nome: número 26947.
A imagem data de 1942 ou 1943. Kwoka morreria alguns meses depois.
Apesar de conhecido há décadas, o retrato voltou a surpreender devido ao trabalho de uma artista mineira de 23 anos. Marina Amaral deu cores à foto, feita originalmente em preto e branco.
A imagem chamou a atenção do Memorial de Auschwitz, que a divulgou em suas contas nas redes sociais.
Dezenas de milhares de pessoas se manifestaram ao ver a fotografia de Kwoka em cores. Nos comentários, relataram ter se identificado pela primeira vez com o massacre perpetrado pelos nazistas nos anos 1940.
A nova imagem da jovem lembrou diversas dessas pessoas de si próprias ou de seus familiares. "Tenho uma filha dessa idade", escreveu uma. "Recorda-me de uma amiga há 30 anos", disse outra.
"Quando vemos uma fotografia em preto e branco, nos esquecemos de que os retratados eram humanos de verdade", diz Amaral à Folha.
A morte sistemática de milhões pelo regime de Adolf Hitler, afinal, afetou pessoas de carne, osso —e cores. "Conseguimos, assim, estabelecer uma conexão com ela. Deixa de ser uma estatística."
A ideia não é desprovida de fundamento científico.
Uma pesquisa publicada em 2002 na revista acadêmica Experimental Psychology indica que tendemos a lembrar mais de fotos coloridas do que de seus originais em preto e branco. O teste foi realizado por Felix Wichmann, do Instituto Max Planck.
AUTODIDATA
Amaral já restaura e pinta fotografias antigas há anos, um trabalho que diz ter aprendido sozinha, fuçando nas ferramentas do software de edição Photoshop e em tutoriais na internet.
É uma tarefa que tem reunido uma comunidade de pessoas que, como ela, se dedicam a recriar cenas históricas —eles se reúnem no fórum de discussões Reddit.
A pintura não é feita ao léu. Algumas fotografias históricas trazem, por exemplo, informações por escrito sobre as cores originais da cena.
Em outros casos, como uniformes de soldados, há referências confiáveis. Mas o trabalho inclui algum grau de improviso, e essas fotografias colorizadas não costumam ser consideradas documentos históricos.
Amaral rapidamente criou sua própria base de fãs e passou a receber tantas encomendas que, por fim, desistiu de sua graduação em relações internacionais na PUC de Minas Gerais. Ela hoje se dedica de maneira integral à carreira de restauradora.
Ela havia pintado a fotografia de Kwoka há dois anos, mas foi só em março que o Memorial de Auschwitz divulgou a imagem e, com isso, promoveu sua viralização.
No ensejo, a brasileira comentou na publicação do museu: "Eu adoraria fazer isso com outras imagens".
O desejo foi atendido: ela negociou uma parceria com o memorial para ter acesso a 40 mil retratos como o de Kwoka e, com a ajuda de um time de pesquisadores, restaurar e colorizar as imagens.
Não há um prazo para a tarefa; Amaral pretende trabalhar sobre ao menos metade do acervo, e a ideia ir publicando os resultados nas redes sociais diariamente.
"Ficamos impressionados com a reação ao trabalho dela", diz Pawel Sawicki, um porta-voz do museu. "Milhões de pessoas aprenderam a história dessa menina de 14 anos morta em Auschwitz devido ao fato de que puderam ver a sua foto em cores."
"As cores fazem com que as pessoas percebam que o mundo em preto e branco, associado ao passado, era uma realidade", diz Sawicki. "Mas é importante lembrarmos que o trabalho de Amaral é arte, e não uma fonte histórica. É preciso tomar cuidado."
Uma das preocupações do memorial é que, na internet, as imagens colorizadas se espalhem mais rapidamente do que as originais.
"As pessoas podem começar a considerar as fotos coloridas como a fonte real, o que elas não são", diz.
O museu estuda, agora, como garantir que o público entenda a diferença entre o original e a interpretação. Uma das saídas é incluir marcas d'água nas fotos colorizadas. Outra ideia é obrigar que a foto original seja sempre publicada com aquela pintada.
A técnica não convence a todos. A curadora britânica Zelda Cheatle, criadora de um fundo para a preservação de imagens representativas do século 20, diz que pessoalmente não se interessa pelas imagens coloridas.
"Para algumas pessoas há mais empatia, mas para mim tem o efeito oposto. Tornam-se quase uma caricatura. Prefiro que seja em branco e preto, que é como foi feito."
"Os horrores que foram vividos em Auschwitz... Não acho que você possa trazer aquelas pessoas de volta à vida usando cores", afirma.
Marina Amaral lança em agosto o livro "The Colour of Time" (a cor do tempo) em parceria com o historiador britânico Dan Jones. A obra inclui 200 fotos colorizadas de eventos no mundo todo, entre 1850 e 1960.
"Entendo que haja alguma crítica, porque algumas pessoas pensam que quero 'melhorar' as fotografias originais", afirma Amaral. "Mas quero apenas apresentar outra perspectiva dos fatos."
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