Descrição de chapéu

Evento literário no Pará vai na contramão dos esforços do setor

Feira Pan-Amazônia está destituída de contrastes étnicos, raciais e de gênero

Valter Hugo Mãe no documentário Especial Arte 1 -
O escritor angolano Valter Hugo Mãe, que estará na Feira Pan-Amazônica do Livro - Divulgação
PALOMA FRANCA AMORIM
São Paulo

 

Os brasileiros Milton Hatoum, Ignácio de Loyola Brandão, Geovani Martins e o angolano Valter Hugo Mãe integrarão as principais mesas e palestras da 22ª edição da Feira Pan-Amazônica do Livro, em Belém do Pará, que vai de 26/5 a 6/6.

Esses autores apresentarão ao público leitor da região a possibilidade de troca sobre formatos e eleições temáticas que baseiam a elaboração de seus livros conhecidos nacional e internacionalmente. Sobretudo pela viabilidade estabelecida pela Companhia das Letras, editora da maior parte desses convidados, em relação ao mercado editorial global.

Porém o diálogo proposto parece ser unilateral, na medida em que a Feira Pan-Amazônica do Livro segue na contramão de eventos literários como a Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica), na Bahia, e a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no Rio de Janeiro, cuja homenagem a Lima Barreto em 2017 substanciou um formato profícuo de inclusão racial e de gênero nesses espaços.

É possível citar ainda o 3º Salão Político do Livro em São Paulo, realizado neste ano, que agregou na Pontifícia Universidade Católica uma gama de editoras de pequeno e médio porte em pé de igualdade estética e política.

A atenção aos marcadores das diferenças sociopolíticas tornou-se o diapasão do atual momento nas discussões sobre a performance literária no país. Não para a Feira Pan-Amazônica.

A edição deste ano do evento no Pará define-se como um acontecimento de promoção cultural destituído de contrastes étnicos, raciais e de gênero.

Isso apesar de a Amazônia ter uma abundante flora literária, semeada por prosadores e poetas com apurada criatividade no proceder estilístico, que apresentam em suas histórias, social e racial, as origens indígena e africana perpetuadas não apenas na aparência fenotípica mas como linguagem, por meio de produção literária intensa e de pesquisa experimental.

A ausência de um contexto de representatividade e proporcionalidade femininas não brancas agrava o panorama da Feira Pan-Amazônica do Livro, levando em conta o debate sobre o ofício literário baseado na pirâmide de opressões raciais e de gênero e no processo de superação, a partir da atividade de autoras negras e indígenas no Brasil.

Além disso, a voz de uma única grande editora na programação principal por meio de seus escritores publicados, a despeito da qualidade estética, elimina toda e qualquer possibilidade de ressonância da bibliodiversidade, conceito de política editorial elaborado no final da década de 1990, pelo coletivo Editores Independientes de Chile e encampado, no Brasil, pela Aliança Internacional de Editores Independentes.

Bibliodiversidade, portanto, é a multiplicidade cultural aplicada ao mundo do livro, das editoras e das autorias. Reunida à biodiversidade, ela refere-se à necessária disponibilização à sociedade de uma produção editorial heterogênea para a composição de quadros críticos e democratização da leitura e da escrita.

Em um país de expressões culturais, étnico-raciais, variadas e desiguais como o Brasil —de altos índices de analfabetismo, acesso restrito ao universo literário e exclusão de poéticas baseadas na oralidade—, a ética da bibliodiversidade tende a avançar, apesar de episódios como esse.

A mudança apresenta-se como alternativa comprometida com aspectos fundantes da história da literatura do país.

Paloma Franca Amorim é dramaturga e autora de “Eu Preferia Ter Perdido um Olho” (ed. Alameda)
 

 
 

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