Lembrança não é retrato fiel do passado, diz roteirista de 'Quase Memória'

Filme de Ruy Guerra foi mote de debate promovido pela Folha

Camila Gambirasio
São Paulo

​Quando o diretor Ruy Guerra decidiu adaptar “Quase Memória” para o cinema, não houve grande preocupação em seguir à risca o enredo do romance de Carlos Heitor Cony. O objetivo principal era criar, a partir dele, um filme sobre os mecanismos da memória.

​"Antes de discutir o livro, discutimos como faríamos um filme somente sobre a questão da lembrança. Só depois disso vimos como isso se encaixaria com a obra”, declarou o cineasta Diogo Oliveira, que assina o roteiro com Bruno Laet e Guerra.

“Fizemos uma investigação sobre a memória, tratando-a como uma criação, uma construção, e não como um retrato fiel do que já aconteceu. Compartilhamos da ideia de que isso não existe, e isso foi o fator principal para fazer o filme”, afirmou Oliveira no debate que seguiu a pré-estreia do longa na última quarta (18), no Espaço Itaú de Cinema, em São Paulo.

O resultado não foi uma adaptação propriamente dita, mas um filme autoral inspirado na obra homônima e autobiográfica do escritor e jornalista Carlos Heitor Cony (1926-2018).

Vencedor dos prêmios Jabuti de melhor romance e Livro do Ano pela Câmara Brasileira do Livro, o romance se assenta nas memórias de Cony sobre seu pai, um excêntrico jornalista morto há anos, mas que o personagem-autor acredita ter sido o remetente de um pacote que recebe em casa.

O filme, por sua vez, promove o encontro de duas versões do mesmo personagem --o Carlos Jovem, com cerca de 40 anos, interpretado por Tony Ramos, e o Carlos Velho, de aproximadamente 70, vivido por Charles Fricks.

 “A decisão de colocar o personagem contra si mesmo também partiu dessa discussão sobre a memória. No livro, o narrador não tem um interlocutor. No filme, temos um debate de via de mão dupla, mas sem saída, já que o mais velho não se lembra do passado e o mais novo ainda não o viveu”, definiu o roteirista.

O evento, promovido pela Folha, contou ainda com a presença da historiadora Vavy Pacheco, autora do livro “O Que É História” e da biografia “Ruy Guerra - Uma Paixão Escancarada”, lançada pela editora Boitempo em 2017. Para ela, o filme também é marcado pelas lembranças do diretor, um dos expoentes do cinema novo, em relação ao próprio pai.

“O Ruy misturou também com as próprias memórias e com a fase da vida que ele está atravessando. Quando leu o livro, viu naquele pai a mesma grandeza nas loucuras, nos cuidados com a família e nos carinhos com o filho que o dele tinha”, disse.

Questionada pelo mediador, o jornalista da Folha Guilherme Genestreti, sobre como o longa se encaixa na extensa obra do cineasta, Vavy respondeu que ele combina a constante busca pelo novo, característica marcante de seus filmes, com a fase da vida em que Ruy, um “jovem de 86 anos", se encontra: “Jovem só na força da criatividade”.

De acordo com Diogo Oliveira, o processo de produção do roteiro durou cerca de dez meses. A cena inicial, de um sapo num pântano, custou para ser definida. “Foi a nossa 19ª opção.”

 O pântano entra como uma metáfora sobre a memória. “Ruy diz que cada um tem um pântano em que guarda tudo. A gente acha que esqueceu algo, mas, quando precisa, está lá”, afirmou o roteirista.

Vavy ainda lembrou que, no início da produção, o roteiro original sofreu alterações por questões orçamentárias e abandonou certos aspectos históricos que encareceriam a produção. Depois, quando o orçamento engordou, não havia mais o apego em produzir um filme muito realista: “Ruy achou que perderia o tom de farsa da memória”, complementou o roteirista.

“Quase Memória” entra em cartaz nos cinemas brasileiros nesta quinta (19).

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