Descrição de chapéu Livros Artes Cênicas

'O texto da mulher é muito forte no Brasil'; leia entrevista inédita com Edla van Steen

Escritora e dramaturga morreu nesta sexta-feira (6), aos 82 anos, em São Paulo

A escritora e dramaturga Edla Van Steen em 2010 - Rafael Andrade/Folhapress
Luciano Gonçalves Rodrigo Simon
São Paulo

​Em fins de setembro de 1993, recém-chegado de uma temporada europeia, Caio Fernando Abreu escreveu a seu amigo e tradutor Gerd Hiler uma carta em que era só reclamações: “São Paulo está terrivelmente Dallas, trambiques, puxações de tapete —tudo gira em torno do poder e/ou dinheiro”. 

Em meio a “[...] exus às pencas por todos os lados”, uma única alegria: “Encontrei Edla, la van Steen avec Sábato Magaldi [...] Eu tinha resistência. Pois gostei, é simples, direta, franca”.

Escritora, dramaturga e viúva do crítico teatral Sábato Magaldi, Edla morreu na manhã desta sexta-feira (6), aos 82 anos, após um infarto. Ela estava internada no hospital Samaritano, em São Paulo. 

Antes, no dia 12 de março, Edla nos recebeu em sua casa para uma conversa como a que encantou Caio Fernando Abreu: “simples, direta, franca”. “O texto da mulher é muito forte no Brasil. Os homens não gostam que se fale isso, mas a verdade é essa”, disse ela.

A proeminência de Edla, figura que nas últimas seis décadas atuou —com sucesso— em todas as esferas das artes, no Brasil e no exterior, talvez seja um bom palpite para explicar a resistência de Caio Fernando Abreu.

Afinal, romancista, contista, dramaturga, tradutora, ensaísta, biógrafa, antologista, pesquisadora, galerista e atriz, Edla van Steen, segundo Moacyr Scliar, “[...] não é uma, são várias, como sabem todos que neste país têm algo a ver com cultura”.

Nascida em Florianópolis, em 1936, aos 24 anos foi a primeira brasileira a ganhar um prêmio internacional de cinema. Por seu papel em “A Garganta do Diabo” (1958), de Walter Hugo Khouri, o júri, presidido pelo diretor Roberto Rosellini, deu a ela o prêmio de melhor atriz no Festival Cinematográfico Latino Americano de Santa Margherita, na Itália.

Nas artes plásticas, em 1973, fundou, em São Paulo, a galeria Múltipla, responsável por expor trabalhos de, entre outros, Amílcar de Castro, Nelson Leirner, Darel e José Luis Cuevas. Ainda nas artes visuais, é autora dos livros “O Mundo Mágico de Marcelo Grassmann: 70 Anos” e “Poetas da Forma e da Cor”. 

Como dramaturga, escreveu seis peças e ganhou, em 1989, em sua estreia com “O Último Autor”, os prêmios Molière e da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). 

Também no teatro, além de 12 traduções, organizou os livros “Amor ao Teatro” e “Na Plateia do Mundo”, que reúnem, juntos, quase mil textos do professor e crítico Sábato Magaldi. Como biógrafa, levou aos livros as vidas da atriz Eva Wilma e do acadêmico Sérgio Corrêa da Costa.

Os trabalhos no cinema, nas artes plásticas e no cinema formam apenas a ponte de um iceberg que tem como base a literatura de Edla. 

Iniciada com “Cio”, em 1965, livro de contos que começou a escrever ainda no set de “A Garganta do Diabo”, sua produção literária passa por cinco romances, cinco livros infantojuvenis, uma coletânea de entrevistas com escritores, em três volumes, e nove coletâneas de contos, somando hoje 28 publicações. Ela ainda preparava uma nova obra.

Diretora de Coleções da Editora Global, tendo ajudado a lançar mais de 300 títulos no mercado brasileiro, tinha como marca a divulgação da literatura brasileira no exterior. Além de ter quatro dos seus livros lançados nos EUA, e seus contos já terem sido publicados em 12 antologias de oito países diferentes, a escritora vinha, desde a segunda metade dos anos 1970, trabalhando pela promoção dos escritores brasileiros em outros países.

O imortal Sábato Magaldi segura o fardão da ABL com a sua mulher Edla Van Steen - Rafael Andrade - 02.mar.2010/Folhapress

Em 1977, ao voltar da Feira do Livro de Frankfurt, convenceu o então secretário municipal de Cultura de São Paulo, Sábato Magaldi, com quem se casaria ainda naquele ano, a realizar, na capital paulista, o Primeiro Encontro com a Literatura Brasileira.

O evento reuniu nomes como Samuel Rawet, Dinah Silveira de Queiroz, Fausto Cunha e Silviano Santiago, além de editores e agentes literários de 12 países diferentes.

A parceria de quase quatro décadas com Magaldi renderia ainda outros frutos em prol da literatura brasileira, aqui e no exterior. Edla aproveitou os dois períodos em que o professor lecionou na França, na Sorbonne e na Universidade de Aix-en-Provence, para escrever seu romance “Madrugada”, vencedor do prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras, em 1992, e também para organizar uma feira de livros dedicada ao Brasil, levando à capital francesa escritores como Rubem Fonseca, Edilberto Coutinho, Nélida Piñon e Antônio Callado.

Um marco em sua atuação como divulgadora da literatura brasileira no exterior é a antologia “O Papel do Amor/Love Stories”, reunindo 15 dos principais contistas brasileiros da década, Ary Quintella, Autran Dourado, Edla van Steen, Flávio Moreira da Costa, Hilda Hilst, Judith Grossmann, Luiz Vilela, Lygia Fagundes Telles, Moacyr Scliar, Nelson Coelho, Ricardo Ramos, Rubem Fonseca, Samuel Rawet e Sonia Coutinho, e que neste ano de 2018 completa 40 anos de lançamento.

Na entrevista, ela comenta sobre "O Papel do Amor/Love Stories” e o mercado editorial.

 

Folha - Como surgiu a ideia da coletânea?

Edla van Steen - A dona da Indústrias de Papel Simão, Vera Maluf, que é muito minha amiga, me disse: porque você não faz um livro para eu publicar?, afinal eu tenho uma indústria de papel. E assim eu escolhi os autores.

Qual foi o critério que a senhora utilizou na escolha?

Boa qualidade de literatura na minha opinião. Tem alguns autores que são bem difíceis, como a Nélida Piñon, que já tem um texto mais trabalhado, Judith Grossmann, a Hilda Hilst, que tem um texto difícil, mas a qualidade deles é que me motivou. Todos os autores do livro são excelentes.

E a ideia já surgiu com uma versão em português com uma versão para o inglês?

Já, porque a Indústria de Papel Simão estava fazendo aniversário, em 1978, então poderia distribuir o livro no final do ano. Era um presente, não era um livro comercial.

O fato de a antologia se voltar também para o exterior influenciou na escolha dos autores?

Não. Escolhi mesmo pela qualidade literária, os autores que eu gostava. Quem faz uma antologia escolhe. Se você perguntar para o Ítalo Moricone que critério ele utilizou para escolher os “Cem Melhores Contos Brasileiros”, eu não sei a resposta, mas deve ser isso, ele lê, gosta ou não gosta.

É sempre um critério pessoal?

Não tem outro critério. Você não pode fazer um critério oficial. Porque o autor que é lido em uma época, na universidade, às vezes não é lido em outra. Os autores são esquecidíssimos. Morreu, entrou num limbo literário. 

Quantos escritores agora esquecidos já foram escritores muito badalados.  A diferença é: há o autor que tem bom texto e que é reconhecido pelos colegas, e o autor que badala imprensa. 

Há uma diferença enorme. Você não vai acreditar: Oswald, quando morreu, teve direito a quatro linhas no jornal. Dez anos depois, Sábato Magaldi (1927-2016),  meu marido, publica a tese dele sobre Oswald e Oswald vira o sucesso que é até agora. Há uma diferença muito grande entre sucesso de mídia e o sucesso real de texto, que as universidades dão. 

No fundo as universidades que descobrem e preservam a qualidade dos textos, não é a imprensa. Porque na imprensa sempre tem aquela coisa do amiguelho daqui, o amiguelho dali.

Por que o inglês foi o escolhido para a tradução?

Porque houve uma época que o francês era a segunda língua brasileira, nas escolas, na universidade. E o inglês virou a língua universal hoje em dia. E também porque a tradutora, Elisabeth Lowe, veio participar de um encontro de escritores brasileiros, que eu organizei. Ela veio conhecer, sondar autores e quis fazer a tradução. Mas não foi muito brilhante, eu reconheço.

Qual foi a tiragem? E como foi a distribuição?

Foram 2.000 exemplares, mil em inglês e mil em português. E foi distribuído mundo afora. O curioso é que vocês tenham esse livro. Interessante, porque o livro tem caminhos sinuosos. Mas eu tenho a impressão que tudo escrito em livro, fica. De alguma maneira alguém vai descobrir.

Houve uma boa repercussão no exterior à época?

Ótima. Aqui no Brasil teve muito ciúme. Dá uma ciumeira que Deus me acuda, viu? Reclamaram: por que eu não estou? É como nas coleções da Global. É que tem contista para dar com pé no Brasil, né? A vida toda o cara pergunta: por que não eu [risos]?

E no exterior teve boa repercussão também?

Sim, dei muitas entrevistas na época. Porque lá, quando sai um livro assim, as universidades compram. Compram logo 300 exemplares de cara.

Por que o amor como tema? Foi uma escolha da senhora?

Foi. Acho que eu estava apaixonada na época [risos].

Ou seja, a escolha novamente pessoal, pelo momento de vida da senhora?
A ideia do amor foi porque eu estava passando por um bom momento apaixonada, saindo de um casamento, começando outro, com Sábato, com quem fui casada 38 anos e meio. O motivo mais simples possível [risos].

Há uma presença forte de escritoras na coletânea. Foi deliberado?

Eu nunca percebi isso. É a primeira vez que alguém está me falando nisso. As escritoras brasileiras são excelentes. Eu acho que o maior escritor brasileiro é a Clarice Lispector. Tem quem ache o Machado de Assis, eu acho a Clarice. Fora aquelas que fazem poema de vitrine, beletrismo, poeminhas de amor mixurucas, a literatura brasileira tem muita mulher importante. 

Você pensar que a Rachel de Queiroz publicou “O Quinze” nos anos 1930, é impressionante. E o texto da mulher é muito forte no Brasil. Os homens não gostam que se fale isso, mas a verdade é essa. Não existe aquele feminino no mau sentido na literatura brasileira. A Hilda Hilst, é uma coisa impressionante o texto dela.

No texto de abertura do livro, a senhora fala que Clarice deveria ter participado da coletânea, com o conto “Amor”, mas ela veio a falecer durante o processo.

Sim, e não tinha quem autorizasse a publicação. Ela tinha topado participar, mas não mandou a autorização porque no meio do processo ficou doente e veio a falecer.

A senhora conhecia pessoalmente todos os escritores que participam da coletânea?

Fui a vida toda amiga de todos. E ainda sou de muita gente nova que me manda textos para ler, eu ajudo a publicar. Eu sou um ser coletivo.

Além de Clarice, houve mais alguém que a senhora gostaria que tivesse participado da coletânea mas que por algum motivo ficou de fora?

Eu queria ter publicado uma mulher que se chama Maura Lopes Cançado. Eu achava excelente o texto dela, mas nada era um conto. Não ficava de pé como conto, ficava de pé como texto. Então eu não pude publicar. Porque tem que haver uma coerência. Conto é conto. Na coletânea só tem conto.

Falando ainda de autoras, a senhora também citou a Hilda Hilst, homenageada da Flip neste ano. Que a senhora achou da homenagem a ela?

Não sei, tem tanta gente boa que já devia ter sido homenageada. Vou falar Rubem Braga, por exemplo. É uma maravilha o Rubem Braga. Não foi até hoje. A Hilda tinha essa capacidade principalmente por causa da Universidade de Campinas (Unicamp). Como ela morava lá perto, estava sempre em evidência. Mas dela, por exemplo, eu quis publicar os melhores poemas na coleção da Global, mas não consegui porque ela queria 10 mil dólares de adiantamento.

Como foi a escolha do professor Fábio Lucas para escrever o prefácio da coletânea?

O Fábio adora, ele é fã incondicional do conto brasileiro. Ele fez conferências excelentes sobre o conto. Então como ele era meu amigo, e é meu amigo até hoje, eu o escolhi para fazer uma análise. Lendo a introdução, dá pra ver que ele conhece muito mesmo. É um professor excelente.

Se a senhora fosse preparar uma nova coletânea voltada para o exterior, hoje, faria alguma mudança?

Ah, eu mudaria bastante. Há muitos autores novos. Nós temos autores excelentes. Excelentes contistas.

Quem, por exemplo?

O Michel Laub, que é um bom autor. Acho muito interessante. O Luiz Ruffato eu acho excelente autor. Tem gente muito boa, não quero nem mencionar porque vou esquecer um monte de gente. A Adriana Lisboa. Tem muita gente boa.

O livro completará 40 anos no ano que vem. Como a senhora situa a coletânea em meio a um trabalho tão amplo da senhora nesses anos todos?

Pois olha, esse trabalhinho que foi uma coisa pessoal minha com a dona das Indústrias de Papel Simão fez com que eu fosse diretora da coleção da Global, porque eu estava lançando esse quando eles me convidaram para fazer as coleções da Global. 

No começo eu fiz “Os Melhores Poemas”, e o Luiz (Alves Júnior, fundador e proprietário da Editora Global) punha a mão na cabeça e dizia que iria à falência, mas hoje é o carro-chefe da editora. 

A literatura brasileira também melhorou muito com as modificações da Lei de Incentivo à Cultura. E os professores passaram a se interessar mais por autores brasileiros. Isso ajuda. E o autor brasileiro também ficou menos fechado.

Numa entrevista sobre “O Conto da Mulher Brasileira” (Global Editores, 2008), a senhora dizia que algumas autoras convidadas não entraram porque não responderam ao convite a tempo...

Não respondem. Eu dirijo essa coleção porque eu tenho uma paciência inacreditável. A gente escreve dez, quinze cartas para a família e ninguém responde. Eu fiz uma seleção para a Global, que é meu maior orgulho, que é, em quinze volumes, um roteiro da poesia brasileira,  com cada período da literatura brasileira lá analisado.  Mas é impressionante como as famílias não se interessam pelas obras de seus antepassados. Nós não conseguimos autorização, e sem autorização nós não podemos publicar.

A senhora acompanhava a questão dos direitos autorais na época de lançamento do livro? Em 1976, a Bloch Editores havia perdido um recurso do Drummond, Autran Dourado e Samuel Rawet por ter publicado trechos de suas obras sem autorização prévia.

Sim, as leis são muito rígidas, ainda bem, pois é preciso haver uma proteção. O direito autoral é uma coisa inalienável, tem que ser respeitado. O Joaquim Cardozo, o poeta de Pernambuco, para ele não ficar fora da seleção da poesia brasileira, eu mandei sete contratos sem conseguir nada. Eu tive que pegar um aluno do Sábato, que ficou na porta do hospital onde um filho dele, médico, trabalha, para conseguir a assinatura dele para mim. Do contrário, ele ficaria fora do livro, e eu ficaria tristíssima.

Utilizando o Cardozo como exemplo, não há hoje sequer um livro dele à venda nas livrarias. O que a senhora quer dizer é que a culpa não é somente das editoras?

Você não sabe o terror que é. Há herdeiros que, quando procurados, perguntam: tem que pagar alguma coisa? O mercado hoje está muito mais coerente, os editores pagam direito autoral.

A situação do mercado e a situação para o escritor são muito diferentes do início da carreira da senhora

Tudo é muito difícil. Se você escrever um livro e quiser publicar, vai sofrer horrores atrás de editora. Ou você paga seu primeiro livro, como sempre, ou você fica penando vários anos e não consegue editor. É terrível. O editor quer nome famoso. Algumas editoras, que são poucas, apostam em novos nomes, mas as outras não, elas querem tudo já resolvido. É muito difícil. Hoje está tão difícil quanto.

Melhorou em algum aspecto?

Continua tudo ruim. Muito difícil. Tem que mandar para concursos, mas mesmo assim é difícil. Hoje é moda no mundo inteiro fazer uma publicação do autor. No mundo inteiro os autores estão se auto publicando. E agora com os e-books, já estão desistindo do papel, o que é uma pena. Porque o livro tem que ser registrado na Biblioteca Nacional, tem que ter uma ficha da Camara Brasileira do Livro. 

Esse percurso natural do livro são os editores que dão. Eu sei de várias editoras que estão com uma coisa bem interessante. Eles vão editando de trezentos em 300 livros. Então não tem mais a desculpa de não ter onde que guardar o livro. Porque estoque é terrível. Deteriora, é caro. Então estão publicando à medida que a pessoa vai vendendo. Agora dá por causa do computador, fazendo impressão digital.  Os editores sempre foram muito ricos, os autores sempre foram muito pobres.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.