Descrição de chapéu Livros

'Os Beneditinos' mescla tempos de colégio e futebol no Rio de Janeiro

Obra fecha trilogia de traços biográficos do jornalista José Trajano

Alvaro Costa e Silva
Rio de Janeiro

O narrador em primeira pessoa do mais recente romance de José Trajano chega em 1956 ao São Bento, o mais tradicional colégio carioca, com nove anos, calças curtas, camisa azul com emblema de um leão segurando um báculo e sapatos engraxados.

O jornalista José Trajano
O jornalista José Trajano, que lança seu terceiro livro, ‘Os Beneditinos’ - Pablo Saborido/Divulgação

A pasta de couro —que custou os olhos da cara na Casa —Mattos leva cadernos encapados e etiquetados, lápis pretos Fritz Johansen apontados e guardados no estojo com o escudo do América Football Club, borrachas, réguas, uma caneta Sheaffer, livros de português e matemática.

Esse menino —que o leitor imagina engomadinho e bem penteado— não é bem o Trajano, muito menos aquele que conhecemos hoje, jornalista combativo, voz troante, cabelos de professor Pardal, que na TV fala com o espectador como se estivesse de papo na esquina.

É quase: "Não só o personagem, como também o livro, tem 40% de autobiográfico e 60% de invenção. A minha é uma ficção que se vale da memória. Portanto, não pode ser inteiramente verdadeira".

"Os Beneditinos" é o terceiro livro publicado por ele. Em 2104, abrindo a série autobiográfica, saiu "Procurando Mônica", que narra como o menino Zezinho se recusa a esquecer seu primeiro amor.

Publicado um ano depois, "Tijucamérica: Uma Chanchada Fantasmagórica" —elogiado por Luis Fernando Verissimo, Chico Buarque e Ignácio de Loyola Brandão— ressuscita o maior time do América de todos os tempos, para decidir um campeonato contra o Flamengo, contando nas arquibancadas com a força de ilustres torcedores redivivos, de Lamartine Babo a Tim Maia.

"Fiz, quase sem perceber, uma trilogia. Porque estava faltando, para se juntar à namorada da infância e ao time do coração, os tempos do colégio, que me marcaram para a vida toda. Mas precisava inventar uma história", conta.

Aí entra o "walking football". Descoberto por Trajano, o futebol andando na verdade é uma modalidade para veteranos, que não podem correr, com ou sem a bola. Esta tem de ficar no chão, não vale lançamento pelo alto. Passes têm de ser rasteiros e quanto mais precisos, melhor. Os campos são do tipo society, com seis a oito jogadores em cada time. Como não há impedimento, o centroavante na banheira é peça essencial.

Essa estranha pelada da maturidade detona a ação. O narrador resolve reunir os velhos companheiros do São Bento Futebol Clube, para treinar e disputar um torneio em Londres. A finalidade é ir à forra das derrotas sofridas para o rival Santo Inácio, que também adere à brincadeira.

O "reencontro marcado" —uma das inspirações do livro é o clássico de Fernando Sabino— é, segundo o autor, a finalidade do livro. "Nunca me imaginei escritor. Aliás, não sou um escritor na acepção da palavra. Tenho boas histórias para contar. Ter guardado muita coisa na cabeça é uma das compensações de ter ficado velho e ter vivido intensamente, que é o meu caso", conta o jornalista, de 71 anos.

Uma preocupação dele foi a de não se parecer com "um Pedro Nava mirim". Mas as memórias de um Rio ainda gostosamente habitável, entre o fim dos anos 1950 e início dos 1960, brotam das páginas com humor e um toque de melancolia.

A praça Mauá do contrabandista Zica; a Rádio Nacional do programa César de Alencar; o bonde 75, ponto final no Lins de Vasconcelos; o velho Jornal do Brasil do repórter-lenda Oldemário Touguinhó; o Maracanã, um estádio que —os mais antigos garantem— um dia existiu, e sem o qual as tardes de domingo da época não faziam sentido.

Trajano relembra aqueles tempos com tanta ternura que até a conquista da primeira Copa do Mundo, em 1958, contada e recontada em prosa e verso, adquire novo sabor: "As pessoas ficavam imaginando jogadas, gols, a emoção dos jogadores e a volta olímpica só pelo que ouviam no rádio. Um descrevia para o outro o que achava que teria acontecido".

Nos primeiros capítulos, o narrador não está em seus melhores dias, no bairro da Mooca, sem emprego, solitário, meio doente. "Acredita que um amigo me ligou, perguntando se eu estava precisando de dinheiro", revela Trajano, sem esconder a satisfação por ter criado um personagem tão crível.

A evocação nostálgica da obra se choca com o tempo presente do relato, o Rio vivendo o abandono que antecedeu a intervenção militar e o Brasil afundado no clima de ódio nas relações político-partidárias. O autor até ousa antecipar o resultado das eleições presidenciais. (Sem spoiler, para não estragar a surpresa. E que surpresa!)


OS BENEDITINOS

AUTOR José Trajano

EDITORA Alfaguara

QUANTO R$ 34,90 (152 págs.)

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.