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'Quase Memória' aborda o papel da lembrança na apreensão da realidade 

Filme é adaptação de Ruy Guerra do livro de Carlos Heitor Cony

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Tony Ramos em cena de 'Quase Memória', de Ruy Guerra
Carlos (Tony Ramos) em cena do filme ‘Quase Memória’, de Ruy Guerra - Divulgação
São Paulo

O escritor Carlos Heitor Cony (1926-2018) não compreendia o que havia levado o diretor Ruy Guerra à decisão de filmar "Quase Memória", que agora entra em cartaz no país.

"Na época em que negociamos os direitos [1996], disse ao Ruy que não entendia por que ele queria fazer um filme do livro. Continuo sem entender. Minha história não tem enredo, nem conflito. Nem mesmo uma mulher bonita", disse Cony à Folha em março de 2016, em razão da celebração de seus anos 90 anos.

Colunista do jornal por duas décadas e meia (sua última coluna foi publicada em 31 de dezembro de 2017) e autor de 17 romances, Cony não chegou a ver o filme. Morto em 5 de janeiro deste ano, o autor já estava bastante doente quando a produção ficou pronta.

Mas o que, afinal, levou Ruy Guerra ao encontro de "Quase Memória"?

O impacto do livro à época do lançamento, em 1995, ajuda a entender a motivação do diretor. É uma obra-prima de um escritor distante havia mais de 20 anos do romance —o último tinha sido "Pilatos" (1974). Conquistou prêmios como o Jabuti e o Livro do Ano, pela Câmara Brasileira do Livro (CBL). Vendeu mais de 600 mil exemplares.

No romance de tons autobiográficos, Cony recebe um pacote que acredita ter pertencido ao seu pai, o também jornalista Ernesto, morto dez anos antes.

Ao observar o embrulho, recorda-se de passagens da sua vida ao lado do pai, um homem quixotesco, quase patético, que leva o leitor a uma viagem nostálgica pelo Rio capital do país.

O modo como Cony retratou o pai também impressionou Ruy Guerra. "Aventuras à parte, meu pai tinha a mesma grandeza, a mesma generosidade, a mesma sadia loucura", disse o diretor à sua biógrafa Vavy Pacheco Borges em "Ruy Guerra - Paixão Escancarada", livro lançado pela editora Boitempo em 2017.

Havia também as recomendações enfáticas dos amigos do cineasta, como o escritor Mário Prata, para filmar o romance de Cony.

Um aspecto, contudo, ganhou especial relevância para Guerra, a abordagem dos caminhos da memória. Aliás, as principais adaptações do filme em relação ao livro devem muito ao enorme interesse do diretor pelo tema.

O cineasta optou por criar dois Carlos, um homem de cerca de 40 anos (Charles Fricks) e um outro mais velho (Tony Ramos), cujas memórias são cada vez mais escassas. Os diálogos entre eles conduzem o filme.

"Mais do que sair em busca da realidade do pai, os personagens principais discutem a memória", diz Guerra à Folha. "O eixo do filme é esse: em que medida a memória é um mecanismo de compreensão da realidade?"

O assunto, aliás, sempre atraiu o cineasta de 86 anos, moçambicano radicado no Brasil. Nome de ponta do cinema novo, ele dirigiu filmes como "Os Cafajestes" (1962), "Os Fuzis" (1964) e "A Queda" (1978) —esses dois últimos conquistaram o Urso de Prata no Festival de Berlim.

"A memória vai deixando espaços vazios, e você vai reconstruindo esses espaços imaginativamente", afirma Guerra. Para ele, a memória é "um segredo, um brinquedo de viver, um jogo".

O roteiro do filme foi delineado, portanto, por esse olhar lúdico, muito característico de um cineasta que também é poeta, compositor e dramaturgo.

Mas nem só de imaginação vive o cinema. A dificuldade de financiamento também mudou os rumos do filme.

A intenção inicial era recriar a cidade idílica de Ernesto Cony, o Rio dos malandros, não das milícias. Sem os recursos necessários, optou por saída mais modesta.

Com a liberdade concedida por Cony, o roteiro de Guerra, Bruno Laet e Diogo Oliveira passou por quatro tratamentos para acomodar a produção ao orçamento disponível. O filme custou R$ 4,5 milhões, patamar médio para o cinema brasileiro.

Da compra dos direitos de "Quase Memória" aos dias de hoje, foram 22 anos.

Enfim, está nas telas o encontro de Carlos Heitor Cony e Ruy Guerra, dois dos grandes nomes da cultura brasileira da segunda metade do século 20. Mais uma vez, o cinema agradece à literatura.

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