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Aos 40, Teatro do Ornitorrinco aborda resiliência e conflitos femininos

Companhia segue sua mescla de popular, erudito e político em 'Nem Princesas nem Escravas'

Rachel Ripani (esq.) e Christiane Tricerri ensaiam ‘Nem Princesas nem Escravas’ no teatro Sérgio Cardoso  - Lenise Pinheiro/Folhapress
MLB
São Paulo

Um bicho meio esquisito e inclassificável, híbrido de mamífero e ave, acabou por definir um irreverente e despudorado grupo teatral.

O Teatro do Ornitorrinco, como o animal que lhe dá nome, é sempre fadado à extinção, mas segue sobrevivendo. E continua a celebração de suas quatro décadas, completas no ano passado, com a estreia neste sábado (19) de "Nem Princesas nem Escravas".

O texto do mexicano Humberto Robles flerta com a linguagem que marca o Ornitorrinco: o tom de cabaré, o humor, a temática política.

"Quase não existe hoje uma dramaturgia para cabaré. E esta é justamente uma peça contemporânea, que trata de questões contemporâneas, dentro dessa estética", diz o diretor Cacá Rosset, um dos fundadores da companhia.

Em cena, três mulheres reproduzem estereótipos femininos, mas logo invertem as imagens preconcebidas.

Há uma servidora sexual (Christiane Tricerri) que se torna deputada pelo Partido da Mãe; uma dona de casa (Angela Dipp) que vira muambeira; e uma intelectual (Rachel Ripani) que se transforma em patricinha e se casa com um traficante octogenário.

Rachel Ripani, Christiane Tricerri e Angela Dippe em "Nem Princesas Nem Escravas", montagem do Teatro do Ornitorrinco, com direção de Cacá Rosset, para a peça do mexicano Humberto Robles
Rachel Ripani, Christiane Tricerri e Angela Dippe como as personagens de 'Nem Princesas Nem Escravas' - Gal Oppido/Divulgação

"São diversos papéis da mulher, mas que são reconversados. E essas personagens acabam humanizadas, em muitos momentos há uma identificação com a plateia", explica Tricerri, integrante do Ornitorrinco desde 1985.

A relação com a plateia sempre foi uma busca do grupo, fundado em 1977 por Luiz Roberto Galízia, Cacá Rosset e Maria Alice Vergueiro, egressos da ECA-USP —​eles como alunos, ela como docente.

Buscava-se uma terceira via na produção teatral, ao mesmo tempo popular e intelectual. "Existe uma falsa dicotomia na cultura de que ou você faz uma coisa popular ou você faz um teatro sofisticado, num gueto", afirma Rosset.

"O Ornitorrinco sempre quis trazer boas discussões e se comunicar com um espectro diversificado de espectadores."

É o que o diretor chama de "infidelidade fiel": repaginar um clássico para "recuperar as paixões que geraram a obra e colocá-la numa perspectiva contemporânea". "Nesse sentido, sempre fui fiel, quase monogâmico com os clássicos."

Dessa leitura, que mescla linguagens de cabaré, circo e música, veio a primeira peça, "Os Mais Fortes" (1977), reunião de obras de Strindberg encenada no extinto porão do Teatro Oficina (com capacidade para 30 pessoas, "mas a gente colocava 120").

No mesmo ano, fizeram "Ornitorrinco Canta Brecht e Weill". Depois, "Mahagonny Songspiel" (1982), de Brecht e Weill, e "Ubu, Folias Physicas, Pataphisicas e Musicaes" (1985), da obra de Alfred Jarry. Montagens que auxiliaram na formação de um novo público de teatro, mais jovem.

Antonio Carlos Brunet, Cida Moreira e Cacá Rosset na peça 'Ornitorrinco Canta Brecht & Weill' - Lenise Pinheiro/Folhapress

O tom despudorado, no entanto, incomodou aqui e ali. "Teledeum" (1987) foi censurada, acusada de ofensiva à religião. Em Bogotá, a companhia também sofreu protestos de grupos religiosos.

Anos antes, a irreverência levou ao afastamento de Maria Alice do quadro de docentes da USP. "E por minha culpa", diz Rosset. Aluno e professora atuavam numa montagem estudantil, em 1974. Maria Alice era uma rainha louca e Cacá, um toureiro-cafetão.

"Tinha uma cena muito singela em que ela ficava de quatro e eu a enrabava", lembra Rosset. "E ela falava: 'Tudo pelo teatro nacional! Viva Cacilda Becker!'. Enfim, uma cena romântica. Mas não gostaram, abriram uma sindicância e ela acabou sendo expulsa."

O único professor a defendê-la foi o crítico Sábato Magaldi (1927-2016). "E ele falou uma frase lapidar: 'Historicamente, professores sempre enrabaram os alunos. O que é que tem uma vez um aluno enrabar o professor?'. Mas ele foi voto vencido", diz o ex-aluno.

Cacá Rosset e Andréa Pozzi em remontagem de 'Ubu, Pholias Physicas, Pataphysicas e Musicaes' - Luiz Novaes - 26.fev.1996/Folhapress

Hoje, contudo, Rosset vê um enfraquecimento do meio cênico. "O teatro perdeu, por culpa dele, a importância social e artística que já teve. Antes era sempre o grande evento da noite. Hoje em dia, é um pit stop, quase um esquenta. Quanto mais curto, melhor."

Para ele, houve uma "desprofissionalização". "Fazíamos sete sessões semanais. Hoje, mesmo uma peça de sucesso faz duas, três. Não há retorno de bilheteria. Virou um hobby. É como uma pessoa que todas as quintas joga bridge."

Com "Nem Princesas", chegaram a testar o público com sessões prévias em Guarulhos, na Grande São Paulo, Bertioga e Caraguatatuba, no litoral.

"Formar público é uma coisa difícil e de longo prazo", afirma o diretor. "Agora, para afugentar bastam duas peças ruins."

Nem Princesas nem Escravas

  • Quando Sáb., 19h30, dom., 16h, seg., 20h. Até 9/7
  • Onde Teatro Sérgio Cardoso - sala Paschoal Carlos Magno, r. Rua Rui Barbosa, 153, São Paulo
  • Preço R$ 30 (www.ingressorapido.com.br)
  • Classificação 14 anos
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