Os dias morreram com os livros. E, à noite, os arranha-céus de vidro da cidade se transformam em gigantes telas de televisão mostrando em tempo real os bombeiros e seus lança-chamas ateando fogo a pilhas e pilhas de material subversivo, espetáculos pirotécnicos em horário nobre.
Nas fachadas dessas torres, mensagens das redes sociais comentam os eventos do dia —uma enxurrada de caracteres e símbolos azulados flutuando como nuvens neon sobre fogueiras incandescentes.
Toda a luz nessa mais nova adaptação de "Fahrenheit 451" é artificial. No filme, que acaba de estrear no Festival de Cannes e chega às telas da HBO já no próximo final de semana, o sol nunca aparece, e os contornos dessa noite eterna se desenham no brilho glacial de hologramas e telas de plasma.
Quando escreveu esse seu romance distópico, em 1953, o americano Ray Bradbury refletia sobre um mundo assombrado por outra superfície fulgurante. A tela da televisão, que então se tornava onipresente, parecia ameaçar a literatura com fúria igual a de seus bombeiros incendiários.
O mundo cada vez mais iletrado sucumbia à letargia das horas iluminadas por sitcoms.
Nas últimas décadas, muito se falou sobre o poder premonitório do livro de Bradbury, e o século 21, cada vez mais anestesiado por telas de telefone, prova que o declínio no pântano da ignorância que começou com a TV atinge níveis assustadores na atualidade.
Talvez por isso a direção de arte do novo filme às vezes pareça retratar os lares burgueses das metrópoles de agora.
Na solidão estéril de seus apartamentos, os personagens falam com máquinas que sabem a previsão do tempo, escolhem suas roupas do dia e filtram as notícias da hora de acordo com pegadas que deixam nas redes sociais —coisa que a Alexa, da Amazon, ou a Siri, da Apple, já fazem.
"Se eu entrasse na sua casa e queimasse seus livros, você riria e baixaria todos de novo", diz Ramin Bahrani, diretor do novo "Fahrenheit 451", numa entrevista na torre da HBO, em Nova York. "Tinha de lidar com isso, com a internet."
E com o isolamento que ela provoca. Sua versão fez de Guy Montag, o bombeiro no centro da trama, um solitário, sem Mildred, a mulher que tinha no romance ou na primeira tradução da obra para o cinema, feita por François Truffaut em 1966.
Mas Bahrani logo acrescenta que a sua atualização não distancia o novo filme do universo original de Bradbury.
"Ele era contra esse bombardeio de sensações estúpidas. As coisas com as quais ele se preocupava estão aqui e parece que pedimos por elas."
O passo além de seu roteiro, no entanto, parece mais em sintonia com os Estados Unidos de Donald Trump do que com a obsessão por tuítes e curtidas.
É algo que se manifesta na pele de seu ator principal. O Montag do longa de Bahrani é ninguém menos que o astro do momento Michael B. Jordan, pinçado direto do set de "Pantera Negra", em que deu vida ao vilão Erik Killmonger.
Logo que conheceu o diretor, Jordan, que é negro, lembra que não gostou da ideia de interpretar o homem mais vistoso do batalhão dos queimadores de livros nesse longa.
"Não pude deixar de encarar Montag como o pitbull do governo, um opressor", conta o ator. "E via os leitores que ele prende como rostos negros. Não queria fazer uma figura autoritária dessas numa época marcada por tanta violência na minha comunidade."
Jordan, que se refere a vizinhanças de maioria negra como aquela onde cresceu, em Nova Jersey, diz ter notado que "estava programado para pensar isso por causa das notícias, de toda a propaganda".
Mas, conta, decidiu fazer o filme ao perceber que havia na produção questões raciais que não estavam no livro de Bradbury. "Vi que tinha perdido uma certa sensibilidade. E isso me fez querer fazer esse filme ainda mais."
Mesmo que Bradbury não tenha falado a respeito da cor da pele de seus personagens, Bahrani agora cria uma plataforma para Jordan viver outra espécie de super-herói negro no rastro de "Pantera Negra", o agente que se rebela contra um estado autoritário personificado por seu chefe branco.
No papel de Beatty, o capitão dos bombeiros, Michael Shannon também conduz os esforços de repressão e censura à literatura na ficção inspirado pela urgência da atualidade.
"Todos sabemos que há uma guerra contra a verdade em curso", conta o ator. "Vivemos numa época em que o conhecimento é precário, e estamos cada vez mais distantes dele."
Jordan, que teve o primeiro contato com a obra de Bradbury ao ler o roteiro, sente essa falta. "Devemos lutar pelas coisas que nos aproximam, coisas que podemos tocar e sentir. Isso é bem importante."
Livros incendiários
'Feliz Ano Novo'
O romance de Rubem Fonseca, de 1975, sofreu censura pelo regime militar no Brasil. A apreensão da obra, depois de um ano do lançamento e com 30 mil exemplares vendidos, tornou-se um dos símbolos do autoritarismo da ditadura.
'Madame Bovary'
Mais famoso romance de Gustave Flaubert, o livro fez o autor ser alvo de um processo judicial (no qual disse a famosa frase "Emma Bovary sou eu") por atentar contra a moral.
'Ulysses'
O clássico de James Joyce foi banido durante oito anos no Reino Unido, até 1936. Nos EUA, 500 cópias chegaram a ser recolhidas e queimadas. Um processo judicial famoso, em 1933, que analisava a suposta obscenidade da obra, acabou liberando-a.
'O Exército da Cavalaria'
Isaac Bábel foi um dos maiores contistas soviéticos, mas acabou preso e executado como inimigo do povo. Além de 'O Exército da Cavalaria', ele escreveu os 'Contos de Odessa'. Ao que tudo indica, seus inéditos foram destruídos pela KGB. O suposto romance que ele escrevia ao morrer virou uma lenda literária.
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