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Burocratas tentam transformar múmia de Lênin em atração turística

Chinês Yan Lianke retrata delírios capitalistas-comunistas na ficção 'Os Beijos de Lênin'

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O corpo embalsado de Lênin, em Moscou - Reuters
Jaime Spitzcovsky
São Paulo

Os Beijos de Lênin

  • Preço R$ 69,90 (490 págs.)
  • Autoria Yan Lianke
  • Editora Record
  • Tradução Alessandra Bonrruquer

Yan Lianke representa, com Mo Yan e Gao Xingjian, uma coorte de escritores a narrar, com sátira e acidez, paradoxos da China contemporânea.

Colecionam rótulos como penas do "realismo fantástico ou alucinatório" e do "absurdismo", na descrição, com ironias e devaneios, de excessos e contradições do governo de Pequim, na implementação do "socialismo com características chinesas".

A alquimia, criada em 1978 pelo patriarca Deng Xiaoping (1904-97), significa trepidante abertura econômica, alicerçada em doses maciças de capitalismo, com manutenção do monopólio do poder nas mãos do Partido Comunista.

Na ficção "Os Beijos de Lênin", Yan Lianke cria trama para alfinetar a fórmula oficial, costurando a história de um empobrecido vilarejo cujos líderes imaginam um atalho para a riqueza: comprar, em Moscou, o corpo embalsado do líder da revolução bolchevique e transformá-lo em atração turística, a drenar recursos para os 197 moradores da aldeia.

Delírios capitalistas-comunistas atrelados ao projeto do burocrata Liu Yingque, chefe do condado de Shuanghuai, chegam a cogitar, nas páginas de "Os Beijos de Lênin", um parque temático. Fantasiam um acervo com pijama de tricô de Karl Marx, fraque de Friedrich Engels, bens pessoais do vietnamita Ho Chi Minh, do albanês Hoxha e do iugoslavo Tito.

Sem contar uma joia da coroa: um revólver de Kim Il-sung, fundador da dinastia vermelha norte-coreana.

Paradoxos também acompanham a trajetória profissional de Yan Lianke. Trabalhava no setor de propaganda do Exército chinês e publicava novelas críticas aos mandarins. Teve obras banidas e admitiu a prática de autocensura. Em 2004, publicou "Os Beijos de Lênin". Em seguida, amealhou o Lao She, um dos prêmios mais celebrados da China, e ainda foi expulso das Forças Armadas. Não aguentaram sua verve.

Yan Lianke, apesar de viver em Pequim, costuma narrar histórias sobre sua terra natal, a província de Henan. A descrição do universo rural, de pobreza e severidade, permeia "Os Beijos de Lênin" e resgata um cenário cuja presença diminui aceleradamente no horizonte chinês.

Nos anos 1990, cerca de 80% dos habitantes do país mais populoso do planeta viviam em áreas rurais. O avanço meteórico da urbanização, nas últimas décadas, levou o índice a despencar ao patamar de 45%.

Com seus 1,4 bilhão de habitantes, a China do século 21 se modela a partir de um salto impressionante no crescimento econômico e na urbanização, em processo controlado, ferreamente, pelo Partido Comunista.

Além de Yan Lianke, escreveram textos ácidos sobre os paradoxos do "socialismo com características chinesas" Gao Xingjian e Mo Yan, agraciados com o Nobel de Literatura em 2000 e 2012, respectivamente.

Os mandarins em Pequim ainda ignoram demandas por reformas políticas, mas pisam no acelerador de mudanças econômicas. Uma atração turística com o corpo embalsado de Lênin, como imaginado por Yan Lianke, certamente não vai existir.

A economia de mercado chinesa, no entanto, já é um paraíso para parques temáticos, com dezenas deles. E, no país de Mao Tse-tung, já existe até uma Disneylândia, em Xangai.

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