Chefs dão novos contornos à técnica ancestral de curar peixes

Método usado para conservar carne se diversifica para beneficiar sabor, textura e tempo útil

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O chef Eudes Assis e sua mãe, Madalena, secam peixes no varal, ao sol, no litoral norte de São Paulo
O chef Eudes Assis e sua mãe, Madalena, preparam peixe para secar no varal, ao sol, no litoral norte de São Paulo - Nicia Guerriero/Divulgação
São Paulo

​"Não há nada moderno em curar peixe. É um método simples que exige equipamentos muito básicos", diz Zaiyu Hasegawa, chef japonês em destaque na cena de Tóquio, à frente do Den.

Bem, se secar peixe ao ar livre é uma prática ancestral para conservar o alimento na ausência de refrigeradores, hoje a técnica tem sido incorporada e explorada por cozinheiros em busca do inusitado, na tentativa de agregar sabor e enriquecer a textura da carne, além de alargar seu tempo útil.

"No Japão, a oferta de peixes frescos é tão grande que os chefs estão querendo experimentar uma carne mais velha para ver como é", diz André Saburó, um dos cozinheiros brasileiros mais familiarizados com pescados, à frente do Quina do Futuro, no Recife.

Ele acaba de voltar do país, para onde foi justamente pesquisar sobre o processo de maturação. Aqui, dedica-se aos experimentos com atum, para desenvolver uma técnica própria de conservação.

"Sempre houve o costume de guardar o peixe para servi-lo em seu melhor momento, no auge do umami [o quinto sabor]. O que muda são as formas e o tempo."

Para alcançar o ápice dos atuns, que garimpa pessoalmente com os pescadores, Saburó os deixa descansar por até 14 dias em caixas térmicas com gelo, sanitizadas regularmente. Depois de filetados, os cortes são mantidos até três dias a zero grau, para que percam água.

O cozinheiro também recorre a curas em missô e shoyu e a salmouras. "O peixe muda no processo de maturação, as fibras ficam mais macias, a musculatura mais relaxada, o sabor mais suave, delicado, adocicado", diz Saburó.

No novo Oteque, no Rio, Alberto Landgraf usa a salmoura em busca de dois resultados: a perda da umidade da carne e um tempero mais uniforme e equilibrado. "Alguns peixes são mais moles e menos estruturados e esse processo também ajuda a manipulá-los melhor."

Para o chef, que adota a prática para que o peixe tenha "melhores condições de uso por um período maior", o pescado fresco é mitológico.

"O melhor peixe é o melhor conservado e manipulado."

A ideia é compartilhada por Hasegawa para quem a cura é só "atrasar a velocidade de deterioração e preservar melhor, estendendo o período em que o peixe pode ser servido".

Há cozinheiros explorando, com mais liberdade, no entanto, tempos e tipos de cura variados. André Mifano e Caio Zakia, do Lilu, em São Paulo, recentemente fizeram testes para maturar uma barriga de meca. Envolveram a peça em uma crosta de sal, açúcar, temperos e cogumelo moído para trazer terrosidade à carne.

Já Marcelo Schambeck, do Del Barbiere, no centro de Porto Alegre, faz curas leves —e aproveita, ainda, para incorporar especiarias. A páprica, por exemplo, empresta ao olhete uma "nota defumada sem que ele esteja cozido".

"Há mais gente praticando este método porque ele deixa o peixe mais saboroso e pode ser aplicado em usos variados, como sushi, sashimi e tempura, e não só à cozinha japonesa", diz Hasegawa.

Nas mãos do português Marco Gil, que atua há anos em Fortaleza, o atum é submetido a um processo de maturação que envolve elementos locais, num processo semelhante ao da carne de sol. Descansa em uma mistura de sal e rapadura preta (a borra do tacho do caldo de cana, parte da rotina sertaneja).

"Não é conservação porque não temos mais essa necessidade. O objetivo é trazer textura e sabor diferentes sem intervir muito no ingrediente."

Eudes Assis, envolvido com a cozinha caiçara em seu Taioba, no litoral norte de São Paulo, preserva o uso do peixe seco e salgado para manter a tradição da família. "Hoje, tenho geladeira, mas preciso continuar com a cultura, não posso deixar acabar", diz o chef.

Os pais dele, caçula de 14 irmãos, moravam em um bananal sem energia elétrica e dependiam da conservação dos peixes, feita ao sol em varais, para abastecer a mesa em épocas de escassez, à semelhança dos vikings, pioneiros nessa prática, que deu origem ao bacalhau.

O peixe seco do Taioba, porém, pode ser rastreado. "A gente sabe quem pescou, onde, quando e qual foi o tipo de pesca. Não é como o bacalhau, que é uma megaindústria."

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