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Com força expressiva, 'A Cidade Dorme' ecoa sonho para sempre inatingível

Contos de Luiz Rufatto apresentam personagens íntegros e parecem tratar de coisa remota

O escritor Luiz Ruffato,autor de 'A Cidade Dorme' - Bruno Santos/Folhapress
Luís Augusto Fischer

A Cidade Dorme

  • Preço R$ 39,90 (128 págs.)
  • Autor Luiz Ruffato
  • Editora Companhia das Letras

O ótimo "A Cidade Dorme", do provado escritor Luiz Ruffato, traz no foco duas dimensões já presentes em sua obra anterior —a perda da inocência interiorana e as agruras da luta pela vida na cidade grande, por parte de gente que sonha pequeno e sofre muito. 

Mas eis que, vinda de fora, uma pergunta inesperada se impôs: como compreender essa obra na nova conjuntura literária brasileira, marcada pela emergência de uma nova geração de escritores que se criaram como pobres e favelados das grandes cidades e dedicam sua obra a esse mundo?

Ao lado de outros escritores de pegada realista, mas praticantes de formas renovadas de linguagem e estrutura narrativa —como Fernando Bonassi, outro italodescendente, ou Paulo Lins, afrodescendente—, Ruffato construiu uma respeitada obra, em cujo centro brilha o romance-painel "Inferno Provisório". 

Com força expressiva rara, que escapa ao esquematismo da denúncia, ele opera num arco formal, temático e temporal que, no novo livro, se reafirma.

Nele, metade dos contos vem narrada em linguagem convencional como memória melancólica de um tempo ameno, marcado por família humilde, infância e cidade pequena, e a outra metade investe em linguagem nervosa para dar vida a adultos extraviados, sofrendo na alma a rotina de pobreza e violência que se encarrega de esmagar os sonhos e reforçar a memória daquele mundo, para sempre perdido.

Mas o universo social que se movimenta entre esses dois marcos, vistas as coisas desde 2018, ficou para trás.

Seus personagens parecem, por contraste, revestidos de uma aura de integridade ética e mesmo de força épica que os novos e novíssimos —Anderson França, Geovani Martins, Jessé Andarilho, antes deles Ferréz— não trazem, talvez porque não a conheceram, nunca. 

A obra de Ruffato não perde força específica com essa novidade; mas os contos agora reunidos em livro parecem falar de coisa remota, quase do tempo de "Vidas Secas". 

E o tom dos mais recentes escritores, niilista e um tanto desaforado, descrente da utopia moderna de integração a um mundo organizado, com trabalho e salário regulares, faz o discurso de Ruffato se revelar atravessado por muito ressentimento e mesmo por certa culpa de matriz católica, também aqui ecoando um tempo que parece distante e um sonho para sempre inatingível.

Luís Augusto Fischer é professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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