Descrição de chapéu

'Complô Contra a América' tem ideia interessante, mas decepciona

Releia crítica sobre livro do escritor Philip Roth morto nesta terça (22) aos 85 anos

São Paulo

Morreu, nesta terça (22), o escritor americano Philip Roth, 85. Vencedor do Pulitzer de 1997 por “Pastoral Americana” (1997), o escritor foi considerado um dos maiores romancistas da atualidade.

Leia abaixo a íntegra do texto publicado em 2005, escrito por Vinicius Mota, secretário da Redação, sobre o livro "Complô contra a América", da Cia. das Letras.

 

"A verdadeira diferença é que uma conta o que aconteceu, e a outra, o que poderia acontecer". Esse é o fundamento da lição aristotélica, inscrito na "Poética", para discernir a história (o primeiro termo da comparação) da poesia. Poesia entendida pelo filósofo grego em seu sentido amplo, como a arte de representar ("mimesis"). O enunciado me veio à mente quando refleti sobre a leitura que fiz de "The Plot against America" (Houghton Mifflin), do consagrado escritor americano Philip Roth, por ocasião da notícia de que o livro está sendo lançado agora no Brasil, com o título "Complô contra a América" (Cia das Letras).

O mote da composição de Roth é fascinante: numa reviravolta da política, o aviador e herói americano Charles A. Lindbergh assume a cabeça da chapa republicana, vence o democrata Franklin D. Roosevelt nas eleições presidenciais de 1940 e sela um acordo de paz com a Alemanha nazista de Adolf Hitler. Assim, o que o escritor pretende, de saída, é desestabilizar a própria história, que já não é o terreno do que "aconteceu" mas o do que "poderia acontecer", e trazê-la para os domínios legítimos da narrativa poética.

Operação complicada essa. Fosse tão-somente transformar em ficção os anos difíceis de 1940 a 1942 da história estabelecida dos EUA, já seria trabalho para um Tolstoi. Mas Roth quis mais: pretendeu criar um ambiente paralelo à própria crônica dos eventos. E sua ambição não parou por aí: optou por narrar os fatos da perspectiva de um menino judeu que passa dos 7 aos 9 anos no período e habita uma vizinhança judaica de Newark (Nova Jersey), na Costa Leste dos EUA. O garoto é o próprio Philip, em seu ambiente familiar e sua teia de relações com parentes e vizinhos.

Perceba o leitor o acúmulo de desafios complexos que o autor se dispôs a superar para transformar seus pressupostos em um romance. Acontecimentos históricos precisam ser criados como um desvio do relato historiográfico conhecido (ou seja, necessitam deste último para tornarem-se verossímeis nos termos da trama); o escritor precisa colocar a si mesmo (na figura do narrador) e a sua rede íntima de relações nesse ambiente recriado, quase como num laboratório em que caracteres compostos pela visada peculiar da memória são expostos a um ambiente novo e controlado para saber como reagem; e os dois níveis do discurso precisam conversar entre si na linguagem própria da narrativa ficcional.

O resultado, da perspectiva deste leitor, é frustrante.

Gênio

Não espanta que as críticas acerca de "Complô" publicadas pelos mais influentes veículos de mídia de língua inglesa tenham sido, em sua maioria, para glorificar mais um brilhante fruto do gênio de Roth. Um escritor de sua envergadura —que aos 72 anos já recebeu o prêmio Pulitzer (1997), a rara medalha de ouro da Academia Americana de Artes e Letras (2002), a Medalha Nacional de Artes da Casa Branca (1998), além de outras condecorações de altíssimo nível em reconhecimento de sua literatura, dificilmente teria tratamento diverso.

Além disso, Roth domina o ofício o bastante para ter deleitado a crítica com algumas passagens empolgantes. É o caso da viagem que os Roth fazem a Washington em meio ao ambiente de crescente anti-semitismo no país. É o caso da conversa telefônica entre a mãe de Philip e Seldon, um ex-colega de classe do primeiro transferido com sua mãe ao Kentucky sob os auspícios do Homestead 42, programa do governo federal que força o deslocamento de judeus da costa para a "Heartland" americana, a fim de inseri-los definitivamente nos padrões culturais e civilizacionais dos EUA fascistas de Lindbergh. Na conversa, Bess, a mãe de Philip, ensina um desesperado Seldon a preparar sua refeição, pois a mãe deste está bastante atrasada do trabalho —dele jamais voltaria, na verdade, vítima dos distúrbios anti-semitas que irrompem no Estado.

Outros identificaram na caracterização plana, moralizante mesmo, de Herman, o pai de Philip, um maná de significações que emana do romance. 

Ele é o herói principista defensor dos dogmas fundadores da nação americana, o gladiador nos episódios de manifestação de ódio aos judeus que pontuam o périplo cívico por Washington e seus monumentos pela liberdade e a igualdade entre os homens. É quem se recusa a fugir para o Canadá, quando já está claro que será a última opção de liberdade para os judeus americanos, com a seguinte frase: "Não vou fugir, este é o nosso país". Ao que Bess responde: "Não é mais. É de Lindbergh. É dos gentios [não-judeus]". E eis outro trecho incensado, e com razão, pela crítica.

Há alguns que enxergaram no romance, lançado em 2004, um tipo de alegoria da era George W. Bush. Trata-se, neste caso, de um delírio. Nenhum elemento da narrativa avaliza essa leitura. O próprio Roth desautorizou categoricamente essa relação em entrevista à Folha de S.Paulo: "Comecei a escrever este livro em janeiro de 2000. A ideia ocorreu-me em dezembro do ano anterior. Bush só foi empossado em 20 de janeiro. Estava no meio do romance quando ocorreu o ataque de 11/9. Antes disso, a presidência de Bush nem existia. Não passou pela minha cabeça nem por um segundo". E entre os muitos defeitos do governo Bush certamente não está o de ser fascista nem anti-semita.

A trama

Tendo optado por ressaltar trechos brilhantes ou caracteres significativos de "Complô" ou por discutir aspectos exteriores à lógica propriamente ficcional (a "hipótese Bush" ou a penetração de idéias isolacionistas, anti-semitas e mesmo fascistas em figuras de destaque da elite americana no início dos anos 40, por exemplo), a maioria dos críticos subestimou uma pergunta fundamental: a proposta narrativa de Roth foi bem-sucedida? A operação que pretendia criar um desvio na grande história americana e ao mesmo tempo contá-la do ponto de vista de um menino que vai saindo da infância e cuja família sofre as consequências dessa grande mudança de vetor político foi bem realizada a ponto de gerar um romance primoroso?

É nesse ponto que surgem os principais problemas da obra de Philip Roth.


Ross Douthat, escrevendo para a revista acadêmica "Policy Review" (fora, portanto, dos grandes veículos da mídia americana), foi um dos que problematizaram a questão e encontraram falhas importantes. Ele argumenta, com razão, que a trama política de Roth está mergulhada em extrema implausibilidade. Implausibilidade interna à narrativa, ele quer dizer, algo que a tradição aristotélica chamaria de inverossimilhança. 


Douthat argumenta que, em um livro como "The Man in the High Castle", de Philip Dick, a hipótese de saída ainda é mais absurda que a de "Complô": Alemanha e Japão vencem a Segunda Guerra e partilham o território americano. "Mas [Dick, diferentemente de Roth,] faz da implausibilidade a sua força, utilizando-a para criar um sentido de miséria alucinante entre os seus personagens, um senso de que o mundo se distanciou tanto de seu eixo que a realidade, ela mesma, não pode mais ser real", escreve o crítico na "Policy Review".

O que torna a combinação dos dois planos do romance de Roth —o da grande história e o da família protagonista—algo fantasmagórica, forçada, é justamente o fato de que o primeiro está mergulhado no mundo da fantasia, enquanto o segundo está entumescido de realismo. Ainda Douthat: "Roth estabeleceu para si mesmo uma missão quase impossível: a criação de, digamos, um 'Diário de Anne Frank` americano cujo 'pathos', o sofrimento, é interrompido a cada etapa porque o leitor sabe que tudo aquilo é uma fantasia".

Salto repentino

Se a opção de Roth era a de que a trama política ganhasse verossimilhança, para aproximar-se mais da trama familiar, então ele precisaria nos convencer de quais acontecimentos levaram um aventureiro estranho ao grande jogo da política dos EUA a tornar-se presidente da República derrotando o popularíssimo Roosevelt, o mentor do "New Deal", por ampla margem.

"Desde o começo, implausibilidade se acumula sobre implausibilidade. Os pactos de não-agressão com o Japão e a Alemanha passam sem a oposição do Congresso ou da imprensa; a conquista subsequente de todo o Pacífico pelo Japão é aceita fleumaticamente pela política externa americana; os programas para 'assimilar' judeus vão à frente sem muito debate público (a Suprema Corte está ausente de toda a narrativa)", fulmina Douthat.

Outra opção, não aventada por Douthat, seria a de fincar pé na narrativa familiar, deixando que a grande história a penetrasse apenas sutilmente ao longo da trama num acúmulo de pequenas entradas que iria convencendo o leitor de que aquele mundo de fato havia mudado substancialmente. Era essa, mais ou menos, a toada até a página 300 da minha edição em inglês (mais de 4/5 do romance), quando de repente o narrador abre mão de narrar e passa a colar reportagens de jornais de época para relatar o que acontece na política.

O ritmo da narrativa aumenta assustadoramente, e o foco dá um pulo do micro para o macro, para depois retornar. É como se o autor precisasse de uma solução para abreviar o final da história, que ameaçava tomar dimensões de um "Guerra e Paz". A mudança de velocidade é tamanha que me senti lendo uma daquelas histórias antigas, publicadas em capítulos nos jornais que, por razões comerciais, concentravam quantidade asfixiante de ações decisivas no último capítulo. No final, o próprio presidente Lindbergh parece um estorvo para o autor. A maneira pela qual Roth dá cabo dele é algo forçada, no mínimo mal trabalhada.

Em suma, para voltar a Aristóteles, o pecado principal do livro foi ter fracassado na proposta de fazer da trama desviante da história um discurso legitimamente poético. O autor não consegue dominar o grande complô, que flana pelo seu livro com autonomia, avassaladora no final, no que se torna apenas uma narrativa pseudo-historiográfica ou pseudo-jornalística de qualidade inferior. Tudo isso apesar do brilhantismo da escrita e do estilo de Philip Roth.

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