Os dedos da enfermeira percorrem uma cartolina branca onde estão impressas todas as letras do alfabeto.
Quando as unhas sem esmalte passam por cima da letra desejada, o crítico literário Alfredo Monte levanta as duas sobrancelhas por trás dos óculos. A mulher, então, anota o símbolo em um bloco de papel. Em cerca de dois minutos, surge a frase: "Mostre o quarto para eles".
Ali, nos fundos da casa em São Vicente, no litoral paulista, esconde-se uma biblioteca que poderia ter saído de algum dos contos do argentino Jorge Luis Borges.
São cerca de 4.000 exemplares empilhados; a papelada está por todos os lados: em armários, estantes, apoiada no chão, em cima da cama. É ali que Monte passa suas manhãs, ouvindo sempre alguém ler as histórias em voz alta.
Aos 53 anos, o crítico tem ELA (esclerose lateral amiotrófica) e perdeu os movimentos dos braços, das pernas e o da respiração —o que lhe rendeu a traqueostomia que silenciou a voz que amigos definem como de barítono.
"Era grave, bonita. Aliás, ele era um tipo atlético. Quando vinha a João Pessoa, gostava de caminhar até a fronteira com Pernambuco", gosta de relembrar a escritora Maria Valéria Rezende, que mora na capital nordestina.
A esclerose que acabou com as caminhadas é a mesma doença que teve o físico Stephen Hawking, morto em março. A expectativa de vida de pacientes que recebem o diagnóstico é de de três a cinco anos.
A rotina restrita à cama hospitalar instalada na sala e à cadeira de rodas que o leva aos livros faz com que o doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP viva há três anos em uma mistura de "O Escafandro e a Borboleta" com a vida do próprio Borges.
No longa de 2007, o personagem se comunica piscando um olho, enquanto o autor argentino passou a velhice cego e tendo livros lidos em voz alta por outras pessoas.
Monte conta com Marcelo Lopes, 20, e Matheus Teixeira, 23. Os dois se revezam diariamente na leitura dos títulos —apesar da esclerose, o crítico mantém a atividade de avaliar romances, poesias e contos para a imprensa. Tanto que há 25 anos assina uma coluna semanal no jornal santista A Tribuna.
Para criar os textos, como o publicado aqui, segue o ritual mostrado pela enfermeira no dia em que a Folha o visitou. Quando o dedo do ajudante passa sobre a letra desejada na cartolina diante de si, usa um de seus últimos movimentos e levanta as duas sobrancelhas.
O processo demora cerca de quatro horas. No fim de cada mês, quatro ou cinco livros são lidos e analisados, com a escrita feita pelo mesmo método.
"O desejo de viver me mantém trabalhando. Mas não quero que usem a palavra 'superação'. Esse é só um mecanismo psicológico para que os outros se sintam melhores", disse Alfredo à reportagem. Também com a tabela.
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