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Em teatro inacabado, Bia Lessa estreia peça sobre caos contemporâneo

'PI - Panorâmica Insana' tem Cláudia Abreu, Leandra Leal, Rodrigo Pandolfo e Luiz Henrique Nogueira no elenco

MLB
São Paulo

Uma resposta ao caos contemporâneo vem de fragmentos. Textos curtos, gestos, sugestões de imagens e peças de roupa. Muita roupa: cerca de 11 mil itens.

É nessa colcha de retalhos que trafega "PI - Panorâmica Insana", espetáculo que estreia nesta sexta (1º), em São Paulo, com direção de Bia Lessa e textos de Júlia Spadaccini, Jô Bilac e André Sant'anna.

O projeto foi gestado há cerca de cinco anos pelos atores Cláudia Abreu e Luiz Henrique Nogueira, dupla que agora divide a cena com Leandra Leal e Rodrigo Pandolfo.

"Queríamos falar sobre nós, um recorte da loucura da raça humana e esse limite [social] que criamos para nós mesmos", diz Abreu, que volta a trabalhar com Lessa, em cuja companhia estreou aos 18, após mais de duas décadas.

De encontros com os autores, conversas sobre a atualidade e improvisos nasceu o espetáculo, composto de uma série de cenas curtas.

Algumas têm falas mais estruturadas, como a de uma mulher, em meio ao lixão, que conta como começou a comer as próprias fezes; ou a da personagem que, vestida de brilhos, discorre sobre a importância de uma boa aparência: "Você é uma mulher bonita", afirma para si mesma.

Outros trechos são feitos apenas de gestos e imagens, caso de uma série de brincadeiras de criança, de pega-pega a pular corda.

Há ainda fragmentos de "Achei que Meu Pai Fosse Deus", coletânea organizada pelo escritor Paul Auster a partir de relatos pessoais enviados por 4.000 americanos.

De fato, muito é baseado em dados reais. Surge aqui e ali um caso recente, como o assassinato da moradora de rua Fernanda Rodrigues dos Santos, morta a tiros numa via de Copacabana no ano passado.

E há sequências com números (de mortos, refugiados) e listas de nomes, muitos de desconhecidos. Uma reflexão, como define a diretora, sobre "o absurdo do real".

Esse panorama do caos mundano, já expresso no nome da montagem, seria, segundo Lessa, uma tentativa de entender a humanidade hoje.

"Acho que criamos um mundo que não nos serve mais. Tudo virou um comércio. Esse espetáculo é um pouco a pergunta: a que ponto chegamos? Ele é quase um vômito, uma necessidade de dizer algo neste aqui e agora."

Já o "pi" que inicia o título alude tanto à racionalidade do número matemático (formado pela razão entre o perímetro de um círculo e seu diâmetro) quanto ao aspecto contínuo e cíclico da vida.

Esse emaranhado se reflete no cenário, composto de aproximadamente 11 mil peças de roupa —compradas em bazares e que, de acordo com a produção, serão doadas para uma instituição de caridade ao fim da temporada.

As vestes, jogadas pelo espaço cênico, são por vezes figurino, noutras remetem a um lixão ou a um campo de guerra.

Cerca de 300 peças, usadas em cena pelos atores, levam etiquetas eletrônicas (como aquelas de lojas) para que a produção possa, ao fim da sessão, encontrá-las com sensores e reorganizá-las para a apresentação seguinte.

"E [nessa pilha de roupas], a gente perde coisas nossas mesmo. Já perdi chinelo, camiseta. Isso é um buraco negro", brinca Luiz Henrique.

Mas dessa loucura brotaria alguma esperança, afirma a diretora. "É um caos. Mas desse caos louco eles acham aquela roupa para botar naquela hora. É como a plantinha que nasce em meio ao concreto."

No ano passado, Lessa já experimentou com o som de seu último trabalho, uma adaptação de "Grande Sertão: Veredas", romance de Guimarães Rosa (munidos de fones, os espectadores escutavam, de intensidades e canais diferentes, as vozes dos atores, a sonorização e a música).

Aqui, é criado um áudio por vezes artificial. A voz do elenco, que fala por microfones, é eletronicamente alterada em algumas cenas, emitindo um som estranho, quase robótico. "É essa coisa do discurso descolado da alma", diz a diretora.

Ela, que é afeita a espaços alternativos, encena o trabalho num local inacabado. Trata-se do antigo teatro Dias Gomes, na Vila Mariana, que funcionou até 2016 como sede da Oficina dos Menestréis, conhecida por montar trabalhos de Oswaldo Montenegro.

Por ora chamado Teatro Novo —a nova administradora, W7 Produções, busca parceria com uma empresa que poderá rebatizá-lo—, o local passava por reforma, agora interrompida para receber "PI".

(O teatro será reaberto oficialmente em outubro, com uma temporada do espetáculo "Num Lago Dourado".)

"Para mim era muito importante ter um espaço assim, com entranhas, vulgar", conta a encenadora.

A área do palco foi estendida, ocupando parte da plateia. Já o público é alocado numa arquibancada com cadeiras brancas de plástico. "Buscamos uma aridez. Meio Igreja Universal do Reino de Deus."

Não é a primeira vez que Lessa ocupa um local assim. Em 2004, usou os escombros do teatro carioca Dulcina, então em reforma, para sua montagem de "Medeia", protagonizada por Renata Sorrah.

"Hoje os teatros são tão sem nobreza. Parecem um bando de auditórios de quinta categoria, dentro de um shopping center. Você sai e está no meio de um monte de lojas", continua ela. "Por essa razão, acho que tenho me afastado muito dos teatros convencionais."

PI - Panorâmica Insana

  • Quando Sex. e sáb., às 21h, dom., às 18h. Até 29/7
  • Onde Teatro Novo, r. Domingos de Moraes, 348
  • Preço R$ 50 (sextas) a R$ 70 (ingressorapido.com.br)
  • Classificação 16 anos
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