Descrição de chapéu artes plásticas

Exilado após ameaças de religiosos, brasileiro expõe em Nova York

Perseguido por performance com imagem sacra, Antonio Obá também integrou censurada Queermuseu

Silas Martí
Nova York

Um espelho cego no canto da galeria não reflete nada ao seu redor. E as pinturas e desenhos em volta dele mostram só vestígios de corpos, imagens fugidias de mãos e pés que lembram mais fósseis distantes do que os ossos de um homem descarnado.

Esses novos trabalhos de Antonio Obá na filial nova-iorquina da Mendes Wood DM, que faz agora a primeira mostra do brasileiro em solo americano, podem ser vistos como tentativa de reajustar o foco.

Quando partiu para o que chamou de autoexílio no ano passado, esse artista fugia de ameaças de morte no Brasil. Uma performance em que ele ralava uma imagem de gesso de Nossa Senhora Aparecida e cobria seu corpo nu com o pó branco que restava da santa detonou uma onda de fúria.

Líderes políticos e religiosos protestaram contra a ação do artista com insultos e vídeos pedindo a sua detenção. Um grupo de manifestantes chegou a cercar uma exposição de Obá com pedras nas mãos.

"Houve uma perseguição bem efetiva. Descobriram o número do meu celular, e passei a receber mensagens de ameaça", conta Obá, em Nova York. "Foi angustiante, porque você não sabe o grau de loucura desses grupos conservadores nem o que essas cabeças podem acabar provocando."

No rastro dessas ameaças, Obá também foi um dos artistas censurados na exposição "Queermuseu", fechada no ano passado pelo Santander Cultural, em Porto Alegre, após nova pressão de grupos conservadores —depois de um esforço de financiamento coletivo, a mostra será reaberta no Rio, no mês que vem.

Lá vão estar as hóstias em que Obá escreveu nomes de partes do corpo, entre elas língua, vulva e vagina, outra peça que despertou a ira católica.

O corpo, em especial a presença do corpo negro desse artista que retrata um Brasil sincrético e mestiço nos imaculados cubos brancos das galerias de arte, sempre esteve no centro dos trabalhos de Obá.

Mas agora é como se esse corpo perdesse a pele, o sexo e a nitidez. No lugar da pedrada que foi "Atos da Transfiguração", a performance com a imagem sacra, seus novos trabalhos retratam fantasmas, vultos irreconhecíveis a meio caminho da dissolução.

"É a ideia de uma sombra", diz o artista. "É algo que já não é nem homem nem mulher. O trabalho ganhou uma característica mais silenciosa com a saída do Brasil. Foi um processo de interiorização, uma necessidade de reorganizar esse corpo todo fragmentado. Não é mais um autorretrato."

No centro da galeria do Upper East Side, um dos bairros mais ricos e menos negros de Manhattan, está uma pilha de búzios; as mesmas conchas cobrem o corpo de uma pessoa deitada numa pintura.

Obá construiu todas essas obras aludindo a tradições e rituais afro-brasileiros noutro lugar ligado a histórias de violações contra o corpo negro.

Em Bruxelas, a "cidade bonita, dourada e luminosa" onde viveu nos últimos meses, ele conta que estudou fotografias chocantes de negros com pés e mãos decepadas no Congo por não baterem as cotas de extração de borracha.

Lembrando os corvos que escurecem o céu da capital da Bélgica, essas mãos separadas do corpo formam uma nuvem negra em torno de um vulto anônimo cravejado de búzios em outra das suas pinturas ali.

Mesmo que mais ambíguo, trocando a força dos atos pelos maus presságios, Obá não abandonou o registro da violência. Toda agressão calcada na intolerância, seja pela cor de sua pele ou por motivos religiosos, ressurge transfigurada nesses trabalhos que parecem pensados para desarmar um momento de ódio.

Enquanto seus desenhos, aquarelas e pinturas lembram ossadas, ou só o rastro de uma violência consumada, outras duas obras na exposição subvertem o universo da religião.

Uma tela branca toda furada por pregos, que lembra obras da vanguarda minimalista, ilustra a visão do artista sobre o ato de pregar os ensinamentos de Cristo, a ideia de como um corpo também pode ser "invadido pela palavra" com a violência do martelo.

Ao lado, uma barra de madeira sustenta velas acesas, que, ao longo da mostra, se tornam um amontoado de cera. O defunto que velavam está fora do campo de visão, mas restam as manchas esbranquiçadas de um lamento negro.

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