Quando Jean-Baptiste Racine adaptou em 1677 a tragédia "Hipólito" de Eurípedes ele deslocou os fundamentos da obra. A oposição entre as deusas Ártemis e Afrodite e os cantos corais que movimentam a peça do tragediógrafo grego desaparecem na versão de Racine e dão lugar às pulsões amorosas de Fedra, esposa do herói Teseu, mas inebriada pela paixão que sente pelo seu enteado Hipólito. Na versão do autor francês, o sentimento íntimo se mostra tão devastador quanto as determinações divinas.
A adaptação dramatúrgica que Roberto Alvim faz de "Fedra" também anuncia um deslocamento. A despeito de conservar os fundamentos estruturais e o tom recitativo da tragédia neoclássica, a trama e o desenlace são alterados.
Na montagem atual, Fedra confronta as normas sociais do mundo grego e consuma seus desejos amorosos para com Hipólito. Estimulada por sua escrava doméstica Enone, Fedra ganha traços insubmissos. A adaptação busca reler o mito a partir de influxos da atualidade ao ver ali indícios de "insurreição feminina" contra uma ordem social masculina e opressora.
No campo da encenação, contudo, a montagem adquire um sentido contraditório. Tudo ocorre em torno de uma estética obscura, espécie de marca autoral dos espetáculos do Club Noir. A luz recortada ilumina as personagens que falam, ao mesmo tempo em que adensa a escuridão e a penumbra existente para além delas. A trilha sonora preenche a cena com um suspense perpétuo, criando a sensação de iminência de algo que nunca chega. As atuações são sombrias e marcadas por um tipo de inflexão expressionista nos traços caracterizadores das personagens.
Isso tudo fortalece a presença de uma figura enigmática que ronda todo o espetáculo e intervém no desenvolvimento de cada cena. Com seus cabelos desarranjados e sorriso sombrio, ela manipula os fios do destino e assiste o desenrolar premeditado dos fatos.
A presença desta figura esotérica sugere que tudo ali se desenvolve sob influência de determinações metafísicas. Não é apenas a vontade das personagens e seus impasses sociais que movem a tragédia, mas sim uma força superior misteriosa que controla a existência e o destino dos mortais. A enorme cabeça do Minotauro no centro do cenário soa como um tipo de força incognoscível dirigindo os acontecimentos.
Apesar de querer ressaltar a insubmissão de Fedra e da escrava Enone, a peça logo descaracteriza a revolta ao colocar tudo sob a égide irracionalista das determinações místicas da existência, as quais fazem a insurreição sempre parecer inócua e irrisória. A névoa de obscuridade da montagem contradiz, portanto, os próprios desígnios de reconhecer uma força insurrecta em Fedra.
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