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Historiadores lançam dicionário com ensaios sobre a escravidão no Brasil

Organizado por Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes, livro traz 50 ensaios de especialistas no assunto

Maurício Meireles
São Paulo

Uma velha história sobre a escravidão no Brasil diz que, após o fim dela, Rui Barbosa queimou os documentos do período —e por isso não seria possível reconstrui-lo em toda sua dimensão.

Na verdade, explicam os historiadores Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes, o que ele fez foi queimar documentos fazendários, relativos a impostos. Houve um motivo para isso. Era uma resposta aos fazendeiros que esperavam ser indenizados pela libertação dos escravos.

A conversa de que, por isso, não seria possível estudar a escravidão é uma “fake news” histórica, dizem os dois. Foi uma desculpa da historiografia oficial, que não se interessava em estudar o assunto.

Conjunto de 1865, de Christiano Júnior, representando escravos
Conjunto de 1865, de Christiano Júnior, representando escravos - Museu Histórico Nacional/Divulgação

Os pesquisadores lançam agora “Dicionário da Escravidão e Liberdade” —um volume com 50 ensaios críticos com o que há de mais atualizado nas pesquisas sobre o assunto.

O livro, que chega às prateleiras junto aos 130 anos da Abolição, celebrados neste domingo (13), mostra que é possível estudar o período em detalhes, ao contrário do que diz a história sobre Rui Barbosa —e que as pesquisas nos últimos 30 anos são vigorosas.

A obra traz textos de especialistas no tema, mas escritos de forma acessível e sem notas de rodapé, para o leitor que não é da academia.

“Temos uma produção de alta qualidade, tenho essa vontade de mostrar essa sofisticação [para o público em geral]”, diz Schwarcz.

Os ensaios passam por temas com a religiosidade, as revoltas escravas, as questões de gênero —com as particularidades da escravidão feminina—, o associativismo negro, a escravidão indígena, entre outros.

Os autores dos ensaios são pesquisadores como Luiz Felipe de Alencastro, Luis Nicolau Parés, Stuart B. Schwartz, Martha Abreu e Keila Grinberg —além dos dois organizadores do volume.

Como na história sobre Rui Barbosa, os ensaios servem para contestar informações errôneas sobre a escravidão.

“Isso é uma preocupação nossa. Vai aparecendo na internet uma tentativa de fazer outra leitura da história. Outro dia vi um programa dizendo que os dados sobre a entrada de escravos [no Brasil] são exagerados”, diz Schwarcz.

“Não tenho medo de debate, o que não vale é contestar dados documentados. Parece aquilo de dizer que não houve Holocausto. Tenho me dedicado a fazer livros acessíveis também para combater isso.”

Em um dos ensaios, por exemplo,  Luiz Felipe de Alencastro trata de mostrar os números e como chegou a eles. 

De acordo com o historiador, 4,8 milhões de escravizados chegaram ao Brasil no período entre 1500 e 1850. As importações brasileiras foram 46% das destinadas às Américas.

Os novos estudos também mostram o “caráter afro-atlântico da escravidão”, mostrando como o sistema escravocrata nacional se relacionava com seus correspondentes nas Américas e no Caribe —e não só pela circulação de produtos, mas também de ideias.

Os negros recebiam —com os navios que chegavam à costa— informações sobre a revolução no Haiti, revoltas em navios negreiros e a abolição em outros países, diz Schwarcz.

“Há evidências de que [notícias] sobre a Revolução Francesa e o liberalismo chegaram ao Brasil não só por meio das elites, mas também por marinheiros, africanos e e tradutores de línguas africanas [que acompanhavam os navios].”

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Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes contestam, com informações do dicionário, afirmações erradas sobre a escravidão:

Os africanos já estavam acostumados a ser escravos pois já o eram na própria África?
Temos que pensar em Áfricas com diferentes formações sociais, geográficas, culturais e econômicas. Africanos e africanas já eram vítimas de outras formas de escravidão no Oriente Médio, no Mediterrâneo e no Oceano Índico. Mas nenhum desses exemplos teve um custo humano tão alto quanto o tráfico atlântico, que vitimou cerca de 12 milhões de pessoas e disseminou violência e escravização em todo o continente africano.

Rui Barbosa mandou queimar os documentos da escravidão, e jamais conseguiremos saber a história dos escravizados?
Ele mandou queimar documentos relativos a impostos. Era um sinal aos senhores que esperavam ser indenizados após a Abolição. Esta afirmação foi na verdade uma desculpa da historiografia oficial, que não se interessava em estudar a escravidão. Há importantes estudos sobre a economia, as cidades, a família e a cultura dos escravizados —inclusive realizando biografias deles próprios 

A Abolição foi só algo parlamentar, discutida nas cidades e entre letrados?
A abolição foi um processo, uma questão supranacional a partir da década de 1880. A ele aderiram, sim, classes médias, profissionais liberais e políticos, mas sobretudo negros e negras escravizados, livres e libertos. Estudos mostram a força dos movimentos sociais pela Abolição não só na corte, mas também em São Luís, Porto Alegre, Recife, Santos, Belém e outras cidades. Também em áreas rurais, como Cachoeira (BA) e Bragança (PA), houve sociedades abolicionistas, incluindo agremiações operárias, bandas de música e jornalistas.

A escravidão no Brasil foi mais suave?
Num sistema que supõe a posse de uma pessoa por outra, não existe suavidade. Pesquisas mostram como escravizados que trabalhavam no eito tinham jornadas de no mínimo 15 horas e morriam, em média, com 20 anos de trabalho. Para as primeiras gerações, a mortalidade era ainda mais alta, chegando à média de 10 anos de trabalho em algumas áreas e períodos. A mortalidade infantil eram altíssima. Os senhores executaram uma verdadeira cartografia de castigos. Nos EUA os dados mostram que cativos morriam após 35 anos de trabalho.

Isolados, os escravos não sabiam o que ocorria em outros países?
Havia escravidão em várias partes do Caribe e da Europa. Circulavam não só mercadorias, mas também ideias que chegavam aos ouvidos dos negros e negras em várias partes do eixo afro-atlântico. Notícias sobre o Haiti, tensões nas praias africanas, revoltas em navios negreiros, motins na Europa, a abolição em outras partes das Américas, entre outros, circulavam.

Há evidências de que notícias sobre a Revolução Francesa e do liberalismo chegaram ao Brasil não apenas por meio das elites, mas também através dos marinheiros, africanos e "línguas": espécie de tradutores das várias línguas africanas e que também davam notícias para os escravizados a respeito do que ocorria no Caribe, nas Américas e até mesmo na Europa. Havia um movimento intenso de ideias políticas pelo Atlântico.

Dicionário da Escravidão e Liberdade

  • Preço R$ 74,90 (560 págs.)
  • Editora Companhia das Letras
  • Organização Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes

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