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Ignorar peso de bombas políticas, como a nomeação de Lula, torna filme a-histórico

Diretora escolhe os trabalhos da comissão do impeachment no Senado como foco

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FILME O PROCESSO
Dilma Rousseff em cena de "O Processo" - Divulgação
Brasília

Ao escolher como foco os trabalhos da comissão do impeachment no Senado, Maria Augusta Ramos, diretora de "O Processo", deixou de fora eventos políticos significativos que, embora não justifiquem ou expliquem isoladamente o afastamento da presidente Dilma Rousseff (PT), tiveram um peso sobre o Congresso que não pode ser desconsiderado.

Como um documentário é apenas um recorte da realidade, Maria Augusta tem todo o direito de contar a história sob o prisma que achar mais adequado. É louvável que cineastas experientes como ela dirijam suas lentes para o registro a quente da política brasileira contemporânea, fato raro no país. O impeachment de Fernando Collor em 1992, por exemplo, não rendeu nenhum documentário gravado no calor dos acontecimentos.

Cabe então analisar como ela enfrentou o desafio. O foco de tornou mais simples um evento histórico complexo. O filme resume a queda da presidente a um teatro processual absurdo —a referência a Franz Kafka (1883-1924) no título.

Algumas das bombas políticas deixadas de lado: Dilma tentando proteger Lula da Lava Jato ao nomeá-lo ministro, a divulgação da conversa e o protesto de populares na porta do Planalto; as dificuldades de controlar a base de apoio, o que levou à debandada de aliados, ingrediente determinante do impeachment.

Não surgem também a participação pessoal de Dilma, como presidente do conselho de administração da Petrobras, na compra da refinaria de Pasadena, um dos muitos escândalos investigados pela Lava Jato; a delação do senador Delcídio Amaral (PT-MS), então interlocutor privilegiado dela e de Lula; a queda brutal do PIB por três anos seguidos; e os grandes protestos de rua contra Dilma e o PT em 2015.

Tudo isso, é verdade, não foi objeto do processo, que tratou de pedaladas fiscais (empréstimo via bancos públicos) e edição de decretos de crédito sem aval congressual.

A tese formal abraçada pelo Legislativo para afastar Dilma é de fato questionável e deverá ser objeto de discussão por um bom tempo, mas fingir que importantes elementos políticos não estavam no ar naqueles dias, como faz o filme, é construir uma versão a-histórica que mais embaralha do que esclarece.

Com a exceção de um notável "mea culpa" do ex-ministro Gilberto Carvalho, Maria Augusta passa ao largo dos acontecimentos pretéritos que atrapalhariam sua narrativa, mas poderiam expor as raízes do processo ou avançar sobre terrenos ainda não explorados. A conspiração política contra Dilma para estancar a Lava Jato, desenhada nos áudios de Sérgio Machado, por exemplo, é apenas citada de passagem, sem qualquer aprofundamento.

Para reforçar o tom de farsa burlesca, a edição toma decisões controversas. Segundo o filme, a saída de Dilma do Planalto, em 12/5, ocorreu logo após a comissão do Senado ter acolhido o relatório preliminar. Contudo, a medida foi também aprovada no plenário da Casa seis dias depois, e só então Dilma saiu.

Mostrar a sessão em que 55 senadores contra 22 aprovaram o início do processo talvez soasse menos anedótico para os objetivos do roteiro do que estabelecer a decisão da pequena comissão (14 a 5) como o pivô do afastamento.

Ao tratar da acusação, o filme suprime a fala técnica do procurador Julio Marcelo, mas reforça bizarrices da advogada Janaína Paschoal.

Os realizadores poderão argumentar que o propósito não era contar tudo e que o processo foi sim um golpe parlamentar. Mas também é verdade que, segundo a lei, o impeachment tem natureza híbrida, como julgamento técnico e político ao mesmo tempo.

Nada mais natural, portanto, que trouxesse os ventos políticos que antecederam a decisão do Senado, mas a produção optou por não fazê-lo.

Maria Augusta teve a coragem de enfiar a mão nessa caixa de marimbondos que divide o país. Mas o impeachment de Dilma ainda aguarda um documentário à altura da epopeia multifacetada e turbulenta que foi.

Rubens Valente é repórter da Sucursal da Folha em Brasília e de 2014 a 2016 cobriu a crise política à época e a queda da presidente.
 

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