Em "A Cartuxa de Parma", Stendhal faz Fabrice Del Dongo perambular, mais perdido que cachorro que caiu do caminhão de mudança, pela batalha de Waterloo, em 1815.
No recém-lançado no Brasil "Viagem Sentimental", o narrador em primeira pessoa também vagueia, mas sabe muito bem onde está: no centro da violência e do caos da Primeira Guerra, das revoluções de fevereiro e outubro de 1917 na Rússia e da guerra civil que estava por vir.
Teórico literário e um dos fundadores da escola formalista, Viktor Chklóvski (1893-1984) serviu em combate como instrutor de carros blindados e comissário de guerra, e foi ferido com gravidade.
Teve pressa em registrar sua experiência: a primeira parte ("Revolução e Front") apareceu em 1919 e a segunda ("Escrivaninha"), em 1923, quando o autor já estava no exílio.
Tal urgência transparece no estilo de frases curtas e desconcertantes usado para retratar a crueldade das execuções e fuzilamentos no front: "Algum alemão gritou: 'Eu me rendo', caiu de joelho e levantou os braços. Um dos nossos soldados passou correndo, depois deu meia-volta e, mirando no flanco dele, atirou".
Por vezes, a prosa de Chklóvski lembra a concisão absurda de Isaac Babel ou a beleza fria de Ernst Jünger —não à toa, escritores que descreveram cenários e situações semelhantes da mesma época.
Mas "Viagem Sentimental" passa longe de ser só um relatório da brutalidade na guerra (embora cumpra a função). Desde o título (tirado da obra de Laurence Sterne, "Uma Viagem Sentimental pela França e a Itália"), aponta a radicalidade estética que impregnou o ambiente cultural (pintura, artes gráficas, cinema, teatro, literatura, arquitetura) depois da revolução russa.
Na definição do poeta Sérgio Alcides, que assina a orelha, trata-se de um "memorialismo de vanguarda". Ou uma autobiografia assumidamente ficcional, que une relato de invenção, reportagem, depoimento, ensaio, diário de viagem.
Uma leitura fragmentária e arbitrária, com frequentes digressões, não fosse Chklóvski especialista em Sterne e Cervantes, estudados no livro "Sobre a Teoria da Prosa", de 1925.
A vida literária no início da república soviética é abordada a partir do elo com Maksim Górki, que idealizou a publicação de edições de literatura universal em larga escala, academicamente confiáveis e baratas, ao alcance de operários, camponeses e soldados.
"Simplesmente encalharam. Toda a literatura de propaganda virou papel de cigarro", escreve o autor.
Conspirador antibolchevique, Chklóvski viu sua "Viagem Sentimental" entrar para o índice de obras proibidas pelo governo. Não devia ser fácil engolir suas profecias: "Os bolcheviques se mantinham, se mantém e se manterão graças à imperfeição do mecanismo que eles governam".
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